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Críticas

Cineplayers

O decadentismo a toda prova de Luchino Visconti.

8,5

Após atingir um dos cumes de sua obra com Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971) ─ que tantos elogios lhe valeu como também críticas severas por algumas opções estéticas e de conteúdo supostamente discutível ─, o italiano Luchino Visconti chegava a um daqueles pontos na carreira de grandes cineastas em que se instala a questão de o que fazer após alcançar a perfeição absoluta em torno de algumas de suas maiores obsessões como artista? Visconti ainda se meteria na realização do monumental Ludwig (idem, 1972), com os seus excessos na composição, nos cenários e na cor, e com a própria duração do filme acrescendo a esse excesso, com um tempo de projeção desgastante, mas recompensador. O preço a ser pago foi o começo dos seus problemas de saúde (teve um enfarte ao término das filmagens), a relação complicada com Helmut Berger (seu companheiro nesses últimos anos e que transformou em astro) e os conflitos com os produtores, que mutilaram Ludwig para uma versão de duas horas (depois da morte do cineasta seria lançada uma cópia de quatro horas de duração, mais fiel aos seus propósitos originais). Como imaginando não lhe restar muito tempo de vida, Visconti se volta para si mesmo, abandonando as adaptações literárias e filmes de época recorrentes em sua obra, para a realização de Violência e Paixão (Gruppo di famiglia in un interno, 1974), seu filme mais pessoal, ao criar o quase autobiográfico personagem do Professor (Burt Lancaster), chamado assim mesmo, apenas de O Professor.

É preciso ainda uma vez mais voltar à filmografia pregressa e à época recente do cineasta italiano e compreender que esse personagem ─ bem como o filme ─ é uma releitura do musico encarnado por Dirk Bogarde em Morte em Veneza, agora um intelectual recolhido ao espaço confinado e restrito de um apartamento (o filme quase não se afasta do apartamento que lhe serve de palco, da mesma forma que o protagonista se recusa a sair do ambiente que lhe serve de reclusão). Visconti se inspirou em Thomas Mann e Gustav Mahler como fontes para a criação daquele personagem, mas o conjugava consigo próprio, com traços pessoais, para no fundo estar se referindo a si mesmo. Com Violência e Paixão, Visconti não chega a criar um alter-ego (diretor e personagem diferiam em mais de um aspecto no comportamento e personalidade), mas é onde pôde lançar uma visão particular de mundo perante uma sociedade que – passados os anos sessenta – sofrera intensas transformações (nisso o personagem se assemelha ao Príncipe Salinas, de O Leopardo [Il Gattopardo, 1963]) e com a qual o seu protagonista já não se identifica. É a tragédia particular de um homem visivelmente fora de sincronia com o universo a sua volta.

Em auto-exílio em seu apartamento na Roma dos anos 70, em meio a livros e cuidando de sua coleção de pinturas, O Professor é alguém que se isolou do mundo. A chegada no apartamento vizinho (que também lhe pertence) de uma família desonrada, mas de posses e origem nobre, o leva a degradação típica de quase todos os filmes de Visconti. Sem paciência para formalidades, O Professor se perturba facilmente com barulhos e com os estranhos, e seus hábitos e linguajar lhe parecem vulgares e pouco civilizados. O personagem se esforça em preservar sua privacidade, a se manter afastado dessas pessoas e de problemas, mas é obrigado a se envolver com elas, de sofrer e se distrair com sua convivência. O contato forçado, entretanto, o leva a surpresas agradáveis, como descobrir que o membro mais intempestivo do grupo, o jovem Konrad (Helmut Berger) é capaz de apreciar árias e discos de ópera ou de reconhecer a autoria de quadros ingleses do século XVIII que retratam cenas da intimidade de famílias nobres e burguesas, o interesse principal da coleção de pinturas do Professor.

Violência e Paixão é um filme de intimidade forçosamente compartilhada, na qual a aproximação de ambas as partes vai desvendando as personalidades de todos os envolvidos em cena (não sem consequências dramáticas). O grupo em torno da Marquesa (Silvana Mangano, praticamente repetindo o seu papel em Morte em Veneza, agora com bem mais espaço na narrativa) ─ todos, incluindo ela própria, de comportamentos devassos ─, chega como um estrondo na existência pacata do Professor (um observador da vida, mas que não necessariamente gosta de participar dela). O que inclui a música de juventude que irrompe naquele ambiente erudito, como na cena da orgia (um ménage a trois filmado de maneira extremamente delicada e bonita) flagrada pelo Professor, ao som de uma das grandes canções de Roberto Carlos, cantada em italiano por uma mulher.

A decoração e a câmera que passeia pelos espaços fechados de Violência e Paixão conferem um dinamismo e uma dimensão mais ampla ao cenário, integrados perfeitamente às características dos personagens, com ambientes rigorosamente ocupados por livros, quadros e móveis de bom gosto na residência do Professor, que contrastam com uma certa vulgaridade na residência da Marquesa, quando ela nos é finalmente apresentada. Os inquilinos bebem, comem, se divertem e transam juntos, mas quando a farra acaba se comportam como animais selvagens. Destaque também para uma breve participação de Claudia Cardinale, presente em um delírio do personagem de Lancaster.

A relação algo paternal entre Konrad e o Professor (que o adota quase como um filho) espelha a de Hermut Berger e Visconti. Ao final, o personagem reconhece que eles todos poderiam ser a sua família, a família que saiu bem ou mal, totalmente diferente dele, mas que mesmo assim os ama. Violência e Paixão faz ainda um comentário social e político sobre a corrupção e os abusos das classes dominantes, temas caros ao diretor italiano, que vivia a contradição de ser um aristocrata com tendências marxistas. "Os intelectuais da minha geração tentam achar um equilíbrio entre política e moral; e essa é uma procura pelo impossível", diz o Professor, um tanto resignado. O casal formado pela Marquesa (esposa de um rico industrial, que, segundo ela, "jamais leu um livro na vida, mas tem mania de manter salas cheias de livros") e Konrad (ex-integrante dos movimentos estudantis dos anos 60), o seu gigolô, desencadeia as tensões e ressentimentos morais que explodem no final, cuja maior vítima acaba sendo o Professor, acordado de um sono tão profundo e insensível como a morte, o que por fim se anuncia como um disfarce traiçoeiro da própria morte. O plano no desfecho com o Professor examinado em seu leito (de morte?) remete a um outro muito parecido com Dirk Bogarde na mesma circunstância no começo de Morte em Veneza. Um testamento e um ciclo que se fechava na obra do cineasta italiano, que já debilitado e em uma cadeira de rodas dirigiria ainda mais um filme, o belíssimo O Inocente (L' Innocente, 1976), em que faleceu pouco antes de terminada a montagem. Luchino Visconti foi um diretor que morreu fazendo cinema.

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