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Críticas

Cineplayers

Onde está o documentarista?

6,5
A primeira imagem de Visita ao Inferno (Into the Inferno, 2016), a de um plano aéreo subindo as encostas de um vulcão até sua cratera gigante, acoplada por um cântico sagrado, remete-nos diretamente ao também de Herzog Lições das Trevas (Lektionen in Finsternis, 1992), ambos espécies de poetização da capacidade destrutiva – um da própria natureza, outro, do homem. Para além de seus interiores, da poesia e da geografia aérea que constitui, o que esta imagem e todas as outras do filme anterior revelam é o que vem antes, o pré-imagem, as condições de sua constituição, aquela criação sem a qual não haveria cinema em suas formas consolidadas: a tecnologia. A partir dela é possível transpor o corpo, escapar de suas limitações e lançar outros olhares, montá-los, emprestar a eles significados. Porque não podemos voar, criamos o avião. Porque não podemos restituir o movimento (uma falsa ilusão dele, na verdade) ou congelá-lo, surge a câmera. E dessas duas invenções, consolida-se uma parte crucial da filmografia de Herzog – ao menos a parte que, podemos dizer, vem a louvar a própria arte a que ele se dedica.

Mas a imagem que sucede a primeira é sintomática para a derrocada estrutural que marca este último filme do autor. Um corte seco mostra o vulcanólogo Clive Oppenheimer entrevistando um nativo de uma ilhota vulcânica. Suas perguntas parecem programadas, há algo de forçado entre os dois, é possível perceber a expectativa entre respostas para que se lance uma outra questão. Detrás do quadro, a sensação é a de um esquema. Num breve diálogo, aboliu-se toda a organicidade típica do gênio sensível e provocador do alemão. Ele, que tão bem havia se colocado como mais que um ''antropólogo com uma câmera'', apaga-se para dar lugar a um tipo de documentário que o próprio gênero rejeitou desde o princípio – o jornalístico, com suas operações exaustivas e tendenciosas – e que sufoca todo o seu peso estilístico para resumi-lo a um bloco sequencial de curiosidades, deixando à mística um caráter de lampejo dentro da própria obra. 

Curiosamente, Herzog insere imagens de arquivo de seu próprio Encontros no Fim do Mundo (Encounters at the End of the World, 2007), e embora seja perceptível a justificativa de explicitar um primeiro contato com o vulcanólogo na Antártica, a partir do qual a ânsia de documentar o misticismo por trás dos vulcões teria iniciado, o tiro bate no próprio pé: o arquivo do excêntrico diálogo, possivelmente o mais valioso de toda sua carreira, descortina pela primeira vez o homem por trás do documentarista. Ainda que tenha se mostrado diante das câmeras e narrado parte considerável do que produziu, só ali Herzog abre o diário de si, dá a ver seu impulso de filmar, seu motivo, a verve filosófica do humano que captura para preservar, para proteger o precioso da impermanência. Não por acaso algumas das melhores imagens do inferno em que se lança são também imagens de arquivo de buscas anteriores: o casal de fotógrafos que se aproximava demais dos vulcões e morre carbonizado, o eremita enlouquecido que canta e dorme em meio a cidade evacuada. Todo o projeto documental do autor ricocheteia dentro de si mesmo: são encontros despreparados, revelações que a natureza regurgita, infiltrações impossíveis para o humano nas extremidades do mundo vivente. 

Assim como a ficção clássica apaga os rastros de sua escrita, o mesmo pode ser dito do documentário? É preciso que ele não seja documental demais para se articular sem que o roteiro transpareça? Este que às vezes parece inexistente no gênero, outras vezes mata-o pelo ordenamento escancarado. Porque Visita ao Inferno chega próximo demais de uma coletânea de quadros interessantes, do exotismo de cada lugar que tenta se entrelaçar ao significado dos vulcões, mas acaba escorregando dentro da reportagem de raridades de alhures, não há sustentáculo para a proposta. ''O interior do nosso planeta revela uma estranha beleza'', será dito em algum momento, e de fato o vermelho violento, as correntezas de lava, as explosões brutas do próprio planeta guardam sua magia inacessível; mas a custo do intermédio: não é Herzog quem fala, mas o misto bamboleante do cientista e do interesse explícito na curiosidade, que aparentemente só se liga aos vulcões porque ambos estavam no mesmo filme. 

Comentários (1)

Marcelo Queiroz | domingo, 11 de Dezembro de 2016 - 23:33

Eu curti o documentário e achei que tem a mesma pegada documental de qualidade de outros trabalhos do Herzog.

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