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Visitor Q

(Bijitâ Q, 2001)
6,2
Média
35 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

O grito primal de Miike

8,5

Visitor Q é muito mais que uma versão japonesa de Teorema, de Pier Paolo Pasolini. Miike transformou um filme contemplativo e alegórico em um filme bem a seu gosto: um circo de horrores escroto e demente, que visa destruir a família japonesa construída por séculos para então recolocá-la em um estágio primal e animalesco – uma volta às origens do homem que, para o diretor, não parece passar de um pervertido reprimido.

Feito no mesmo ano de Ichi - O Assassino (e de mais cinco filmes além destes, como é típico do ritmo frenético e alucinado do diretor), Visitor Q, ao contrário do seu parente mais famoso, não utiliza a estilização extrema da violência, mas sim o estilo direct-to-video, copiando produções caseiras (explorando a possibilidade de criar sob menores orçamentos com as facilidades da tecnologia de captura digital), dando assim uma atmosfera realista a um filme que, narrativa e dramaturgicamente, logo se envolve pelo surrealismo e pela comédia de humor negro.

A família sob a ótica de Miike é um clube de degenerados no mais alto pico de angústia, com um pai incestuoso obsessivo em capturar imagens sobre a brutalidade da juventude japonesa; a mãe submissa, que apanha do filho e é viciada em heroína; o filho que desconta as agressões que sofre na escola na família; e a filha, que se prostitui e logo no início persuade o próprio pai a fazer sexo com ela, apenas para humilhá-lo depois. Todos eles serão visitados em algum momento pelo caótico visitante que irá mudar suas vidas. Um personagem ambíguo e calado e puramente anárquico, que não hesita tanto em bater nos protagonistas com pedras na cabeça quanto ajudá-los ou seduzi-los.

Essas relações pretensamente estáveis que são visitadas pelo caos, um tema tão frequente no cinema, e exploradas tão explicitamente nos filmes mais controversos, são implacavelmente destruídas em Visitor Q. Ao contrário de O Teste Decisivo e mais próximo de Ichi, Q é um filme onde seus personagens desde o início já apresentam a mais variada das parafilias – e apenas o caos pode devolvê-los ao estado primal, onde encontrariam a paz interior. A perversão do personagem, nascida das suas próprias neuroses – o pai envelhecendo e perdendo a potência sexual, a mãe e a filha subjugadas por uma cultura misógina e sexista, o filho provocador e vítima da violência que o cerca, jamais sabendo como reagir ou adaptar-se.

A chegada do visitante, então, faz os personagens atingirem o pico da negação de si mesmos enquanto indivíduos, descarregando todas as suas neuroses. É aí que Visitor Q, em todo seu humor escroto, dá a volta e torna-se uma obra libertadora. Momentos antes do final, a bizarria atingirá seu pico de estranheza escatológica – e numa chuva bizarra, se livrará de todas as angústias. Se no Teorema de Pasolini regredir ao estado primal era como sentir-se nu e desesperado no deserto, o animalesco para Miike talvez seja a única chance de redenção para o ser humano. Pai e filhos nadam no leite e sugam nos seios de uma mãe curada de cicatrizes e vícios que a sociedade lhes impunha. Desaparecem todas as feridas. Voltam ao estágio do feto, onde a repressão social lhes era desconhecida.

Após a avalanche de piadas escrotas e nojentas, da sequência de absurdos cotidianos revelados em toda a sua monstruosidade, Visitor Q termina com aquele que é um dos finais mais simbolicamente definidos de sua filmografia – e quiçá, feliz do seu modo anacrônico. Para Miike, a felicidade não é aprender a se adequar, é destruir qualquer forma de adequação e qualquer pressuposto de normalidade em ordem de regressar à uma verdadeira liberdade. Como diria o próprio Pasolini no qual se baseou, “não há nada de natural na natureza”. A natureza é livre, em matéria de sexualidade, de desejo, de afeto, de violência e caos – tudo o que o visitante representa para aquelas pessoas e mais além, trazendo uma nova concepção de liberdade que nenhum neurótico entenderia.

Com esse conceito um tanto controverso, o diretor conhecido por sua avalanche de sangue, sexo, escatologia e humor estranho fez uma de suas obras que melhor representam o espírito único do seu cinema feito tão na base de suor, gozo e grito. Pulsão sobre pulsão sobre pulsão: uma intensidade diegética que poucos igualam e poucos acompanham. Miike é o grito primal do cinema – e sem vergonha nenhuma de estourar os tímpanos incomodados.

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