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Críticas

Cineplayers

Uma experiência fantástica para o espectador.

9,0

Hoje, um dos maiores clichês da indústria cinematográfica norte-americana é falar bem da Pixar. Desde que revolucionou a animação com Toy Story, o estúdio de John Lasseter conseguiu a incrível façanha de realizar somente filmes de qualidade indiscutível, como Monstros S.A., Procurando Nemo, Os Incríveis e Ratatouille, além de alcançar uma posição onde suas produções são adoradas tanto por crianças quanto por adultos. Com seu último trabalho, no entanto, a Pixar se superou. Wall-E, uma experiência fantástica para o espectador, não é somente o melhor filme do estúdio, como também uma das realizações mais corajosas do Cinema nos últimos anos.

Escrito e dirigido por Andrew Stanton, Wall-E tem início aproximadamente setecentos anos no futuro. A Terra acumulou imensa quantidade de lixo e tornou-se um lugar inabitável, o que fez com que os humanos se mudassem para uma grande nave no espaço enquanto robôs recolhem o lixo no planeta. Um destes robôs é Wall-E, provavelmente o último de sua espécie, que passa os dias sozinho, catando lixo e colecionando pequenos itens que encontra. É quando, certo dia, uma nave pousa e dela sai Eve, uma robô com a missão de encontrar possibilidade de vida na Terra. Wall-E fica fascinado pela companhia e fará de tudo para não perdê-la.

Claro que, em sua embalagem, Wall-E é um desenho animado e, a princípio, voltado para crianças. No entanto, rotular a magnífica obra de Andrew Stanton desta forma é reduzir o seu alcance e ousadia. Wall-E possui ambição narrativa digna de grandes filmes, o que fica muito claro nos primeiros quarenta e cinco minutos de projeção. Durante todo este tempo, os diálogos simplesmente não existem. Wall-E e Eve comunicam-se unicamente através de sons indefiníveis e gestos, em um desafio imenso aos realizadores – só em termos de comparação, a obra-prima Sangue Negro tinha “somente” os primeiros quinze minutos sem diálogos, aproximadamente três vezes menos.

Mas a conquista de Andrew Stanton é monumental. Este primeiro ato de Wall-E não apenas funciona à perfeição, como representa alguns dos melhores minutos cinematográficos dos últimos anos. É uma realização mágica, que simboliza a verdadeira paixão por contar uma história, fazendo o espectador se envolver com os personagens e conhecer aquele mundo quase unicamente através de imagens. O cineasta apresenta uma realidade fascinante – ainda que desoladora – explorando planos aéreos para demonstrar a imensidão do problema e, de quebra, ressaltar a solidão de Wall-E. O tom em sépia ajuda a reforçar este sentimento, dando a impressão que o planeta Terra é um imenso deserto sem vida e completamente parado no tempo.

Wall-E, no entanto, não é composto unicamente destes primeiros quarenta e cinco minutos. Por mais que represente o ápice narrativo da obra, o filme mantém-se maravilhoso durante toda a projeção, pelo simples fato de o espectador estar completamente apaixonado pelos personagens e pela jornada destes. O roteiro riquíssimo não se limita a contar uma história e passar uma simples mensagem, abordando de maneira inteligente, e até ácida, um sem-número de temas, como a solidão, o amor, a preservação ecológica, o consumismo e o sedentarismo. Assim, o escopo é muito maior do que quase a totalidade dos filmes do gênero e, se Os Incríveis e Ratatouille já possuíam detalhes voltados unicamente aos adultos, Wall-E pode ser considerado o primeiro filme da Pixar que “gente grande” vai gostar mais que os pequenos.

Conquanto apresente um visual arrebatador e ousados objetivos narrativos, é inegável que o núcleo de Wall-E são os personagens. Em um trabalho magnífico dos criadores, o protagonista e sua companheira Eva conseguem ser mais expressivos e cativantes do que atores de carne e osso da grande maioria de produções norte-americanas. Eles não têm muito com o que trabalhar em termos físicos – apenas leves mudanças na posição dos olhos de Wall-E ou nos leds do visor de Eve –, mas a imersão na história é tanta que compreendemos os sentimentos do casal em todos os momentos. Ao invés de dizer, Wall-E faz sentir. Assim, quando Eve está brava com Wall-E por este tê-la seguido ou quando eles compartilham momentos juntos, o espectador não tem a menor dificuldade de entender o que se passa na “alma” daqueles dois seres.

E Wall-E é um personagem fantástico. Inocente e completamente atrapalhado, o robozinho é uma mistura de Inspetor Closeau, Chaplin e Buster Keaton, resultando em uma criação nada menos que adorável. Sua capacidade de ser desajeitado resulta em cenas hilárias, enquanto a pureza de sua percepção de vida cria momentos espetacularmente tocantes. Wall-E nada tem de complexo: após anos e anos de uma vida sem sentido, tudo o que ele quer é encontrar a sua “diretriz”, como o filme repete várias vezes. Enquanto isso, Eve assume este papel. No início, não é necessariamente a companhia ideal para o protagonista, mas apenas uma companhia. Apenas após conhecer melhor a personalidade apaixonante do “lixeiro” ela começa a enxergar algo mais do que apenas cumprir sua missão.

Como se pode perceber, Wall-E é, acima de tudo, uma história de amor. E, o mais impressionante, uma história de amor belíssima, construída com sensibilidade e sentimentos reais, apesar da natureza dos personagens. O relacionamento entre os dois robôs é tocante e convincente, permeado por uma série de cenas que já nascem clássicas, como a maravilhosa dança em volta da nave e o edificante final, que pode fazer correr lágrimas de alguns espectadores. Não é exagero algum afirmar que Wall-E e Eve fazem parte dos grandes casais do Cinema, ao lado de ícones do porte de Rhett e Scarlett (... E o Vento Levou), Rick e Ilsa (Casablanca) e – por que não? – Dama e Vagabundo.

Mas as qualidades não param por aí. A produção é repleta de referências culturais – algumas sutis, outras nem tanto – que certamente passarão despercebidas aos olhares dos pequenos. O piloto automático da nave, por exemplo, é uma homenagem direta ao Hal de 2001 – Uma Odisséia no Espaço. O filme de Kubrick, aliás, aparece diversas outras vezes, como na hilária utilização da clássica Assim Falou Zaratustra. Há, também, referências mais diretas, como ao musical Alô, Dolly, de 1969, e utilizações de diversas músicas que normalmente não se esperaria encontrar em um filme dessa natureza. Se formos um pouco além, uma das principais mensagens de Wall-E remete ao mito da caverna, de Platão, quando os obesos humanos descobrem que existe muito mais do que a vida que viviam até então.

Por mais que existam inúmeros atrativos para os adultos, Wall-E ainda precisa falar com as crianças, e é exatamente quando começa a ação no espaço que perde um pouco sua genialidade. Ainda que os momentos de correria na nave sejam ótimos e impecavelmente realizados, Wall-E deixa de lado parte do seu brilhantismo e unicidade ao cair no lugar-comum das produções do gênero. Da mesma forma, é difícil entender a opção de Stanton em utilizar tanto pessoas reais quanto pessoas em desenho. Há, certamente, uma intenção (mostrar que no futuro viramos caricaturas de nós mesmos?), mas a escolha soa, no mínimo, gratuita.

No entanto, isto é pouco, muito pouco, perto da genialidade de Wall-E. Com uma combinação perfeita entre o aspecto visual e a história, o filme não é somente uma animação, mas uma comédia engraçada, um romance cativante, um drama emotivo e uma ficção-científica reflexiva. São quase duas horas de magia, que revelam uma agradável surpresa quando se descobre que o filme com mais coração do ano é sobre personagens feitos de lata. Não à toa, a obra encerra com uma luz brilhando no escuro. E Wall-E é nada mais que isso: uma luz de esperança. Na vida, nas relações humanas, no mundo e, principalmente, no próprio Cinema.

P.S.: Não percam o hilário curta Presto, exibido antes de Wall-E.

P.S. 2: Fica a reclamação à distribuidora, que, ao menos aqui em Porto Alegre, disponibilizou somente cópias dubladas.

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