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Críticas

Cineplayers

As memórias de d. Araci, e a intensidade de seu neto.

8,0
D. Araci não consegue ouvir direito. D. Araci precisa que seu neto repita tudo várias vezes até ela entender. D. Araci repete a mesma história com os mesmos tempos e inflexões diariamente, as vezes mais de uma vez por dia. D. Araci tem esquecimentos, e isso já fez seu neto pensar em Alzheimer... Mas não é. D. Araci hoje tem 86 anos e um passado que a liga à Armênia, onde seus antepassados viveram. E agora Douglas Soares, o neto de d. Araci e diretor de 'Xale', irá até o país sem saber falar uma palavra sequer do idioma tentar obter respostas sobre a família e entregar um xale que sua avó mandou de presente há muitos anos, mas foi misteriosamente devolvido.

Parte daí a trama desse curto longa metragem de estreia de Soares, que assume pra si referências e métodos já utilizados anteriormente no cinema para contar e desenvolver seu docudrama. Mas nem a duração nem a linguagem do longa impedem o espectador mais sensível de embarcar nas múltiplas viagens propostas pelo roteiro: Douglas vai até a Armênia, Douglas vai até a avó, a avó a Douglas, Douglas vai até o despojamento da sua sexualidade, Douglas viaja até um lugar privado da sua intimidade para construir cinema. O espectador vai até Xale. E é muito fácil a viagem até o filme empreendida pelo espectador, porque o longa de Douglas é próximo, sereno e delicado, além de ser um leque aberto para diversas possibilidades de olhar, sendo ao mesmo tempo sobre Douglas, sobre d. Araci, sobre essa identificação do espectador com esse lugar tão especial e tantas outras.

Com o embaçamento habitual que se espera desse tipo de projeto, algumas respostas são dadas e outras não. Algumas cenas são claramente criadas, outras são claramente vividas, e outras são claramente difusas... Mas se tudo é tão claro, até a dúvida, então talvez nada seja, não é? Coutinho, o mestre de todos, já "jogou essas cenas" e acabou criando um subgênero documental que hoje é recriado mundo afora. O que Douglas faz pode não ser original ou espetaculoso, mas as reais perguntas são feitas nas entrelinhas. E talvez as melhores respostas sejam as que nunca serão dadas. Douglas tem ao seu lado também ao menos um companheiro de jornada nesse novo jogo empreendido por si, o mineiro André Luiz Novaes, que também vem embarcando na ficção contando com sua família como reflexo da realidade, dele e do cinema.

O filme passeia pela tela e talvez nem Douglas nem a própria d. Araci saibam onde começam ou terminam as bordas dessa intensa brincadeira (do inglês 'to play'), mas os respingos dessa ambígua relação que nasce no cinema aos olhos de quem não os conhece é indelével. Porque basta um mísero envolvimento empático com qualquer outro ser humano para se conectar com um universo que descortina tantos temas em um só. Sexualidade, laços sanguíneos, solidão, traição, culpa, desvelo, o tempo, a história de uma árvore genealógica, tudo costurado e bordado com a mesma fina atenção das obras mais sutis, sem julgamentos da parte da realização; essa cabe a nós. E no meio de tudo isso, uma brilhante cena metalinguística onde Douglas está bem abaixo da sua função aqui num set de verdade. De verdade?

D. Araci sabe fazer doce de mamão verde. D. Araci lembra de tomar seus remédios, e depois esquece que os tomou. D. Araci se emociona ao lembrar da família. D. Araci fala "que netinho bonzinho", enquanto Douglas massageia suas pernas e pés. D. Araci descobriu, octogenária, uma nova ocupação... E acha que 'esse negócio de ser artista dá muito trabalho'. Lembro da d. Ditinha, que me espera voltar do fim do Festival e me arremessou pra dentro de 'Xale' de maneira indescritível.

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