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Críticas

Cineplayers

Meditando sobre fantasmas.

7,5
Produção entre Brasil, Portugal e Moçambique, Yvone Kane é um filme de ritmo letárgico como o próprio assunto que aborda - a relação inexorável entre passado e presente, como o que aconteceu há décadas atrás ainda nos afeta diariamente. E entram aí não apenas tópicos como história, política, guerrilhas e segredos governamentais, mas também amizades, amores e decisões de foro íntimo. No filme de Margareth Cardoso, somos filhos do que nos cercou e das escolhas que fizemos - e também sombras de outras pessoas que protagonizavam outras narrativas. 

Tal como em Rebecca - A Mulher Inesquecível, a guerrilheira revolucionária Yvone Kane não existe fisicamente no presente que Cardoso filma - mas ela está o tempo todo, afetando tanto a vida de sua amiga Sara, médica e ex-ativista que caiu em ostracismo e agora opera em um hospital em Moçambique, quanto de Rita, que após perder a filha retorna ao país onde a mãe médica está há décadas e acaba por responder ao luto investigando o passado de Yvone, morta em circunstâncias misteriosas.

Existem basicamente dois filmes dentro de Yvone Kane. Existe o filme de Sara, onde Irene Ravache interpreta uma personagem que paga o preço das próprias escolhas que fez - abandonar o ativismo, trabalhar para freiras que a tratam com um misto de admiração e julgamento, sua relação problemática com o rapaz que adotou. Tem o miolo mais dramático, com os maiores picos emocionais, enquanto Rita tem outro filme, uma trama de investigação com pequenos metafilmes, onde ela procura pessoas que conviveram com Yvone Kane e elas contam suas histórias através de conversas, compartilham lembranças, como era o relacionamento e respondem de diferentes formas à sua curiosidade. 

Não há pressa aqui - há construção, uma colagem de momentos, depoimentos, filmagens, fotografias, em um exercício de afeto tecido pacientemente ao longo de 2 horas. Não há momentos de explosão, e a câmera acompanha as atuações, sempre estática, sempre acompanhando com um certo distanciamento entre ator e lente, sempre deixando aquele mundo de ideologias, lembranças e arrependimentos a um passo de ser alcançado - e sempre com aquela sensação fugaz de que nós estamos acompanhando um tempo que já passou e que a nós não nos cabe a recriação, mas a reconstituição. Tentar entender apenas com os cacos - e nesse sentido, Rita, que investiga o passado, acaba sendo os nossos olhos bem mais do que Sara - que vive do seu passado diariamente.

Pela duração e ritmo, Yvone Kane pode ser descrita por alguns como uma produção que pode ser chamada de um tanto difícil para os pouco familiarizados, e até certo nível pode descrever a obra - o tom corriqueiro, cinzento, algo impenetrável pode deixar muitos espectadores cansados e sem paciência para uma história onde basicamente pessoas no presente pensam e procuram o passado. 

Mas limitar o filme a isso seria reducionista, pois há muito no que ser descoberto aqui nas conversas, quando descobrimos mais e mais da personalidade, o que comprova que a diretora portuguesa sabe tecer um fio narrativo sempre interessante e jamais perde o foco de descobrir as páginas do passado, ainda que o drama de Sara nunca pareça ir de verdade a lugar algum - já que está basicamente vivendo o epílogo de sua vida - enquanto o arco de Sara sempre tem algo novo a oferecer. 

No mais, é um filme muito interessante para se pensar as consequências do entrelaçamento entre política e vida pessoal, entre macro e micro, e também para ao mesmo tempo refletir como isso afeta o novo filme contemporâneo fora do terreno das grandes produções, para onde estão querendo levar o cinema, qual o limite de sua desconstrução e remodelagem. 

É certo que houveram experimentos muito mais radicais, o que pode fazer com que Yvone Kane não ofereça muito ineditismo nesse aspecto. Ao espectador acostumado aexperiências mais radicais, nesse sentido pode não oferecer algo de novo, mas é um filho legítimo dessa geração que não apenas convida mas desafia ao espectador na assimilação de outro ritmo, na exploração de outras vidas, entrando em diferentes tempos de montagem, diferentes enquadramentos,  disposições e composição de malha sonora. 

O universo feminino das mulheres que carregam política e intimidade dentro de si oferece possibilidades infinitas em Yvone Kane, cujo ponto final parece mais uma vírgula de histórias que jamais poderiam ser encerradas em apenas duas horas. Mas, mais que a tentativa de abraçar o mundo, há sobretudo a sugestão. A sugestão da busca por pessoas que não se resumem a um nome ou cargo, a um cinema que jamais deveria encerrar-se em si mesmo. Meditando sobre os fantasmas da História moçambicana, Cardoso abraça o futuro.

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