O meu reencontro com Travis, Hunter e Jane.
Assisti a Paris, Texas pela primeira vez no início de 2015. Naquele momento, era minha terceira gratificante experiência com o cinema de Wim Wenders. Dentre os 3 que eu havia assistido até então, Paris, Texas, foi certamente o que mais mexeu comigo. Confesso que não é meu favorito, mas com certeza foi o que mais me tocou.
Dois anos depois, assisti novamente a Paris, Texas. Algo dentro de mim dizia que eu precisava rever essa obra. Desde janeiro de 2015 até janeiro de 2017 (época em que revi) esse filme ficava martelando na minha cabeça, até que finalmente (e merecidamente), reencontrei Travis e sua família.
Após esse pequeno relato pessoal de introdução, vamos ao filme. Particularmente, considero Paris, Texas uma das obras mais sensíveis do cinema. Mais uma vez deixando meu lado pessoal falar mais alto, eu criei uma simpatia enorme com Travis. Era como se de alguma forma eu sentisse o vazio do personagem. Aquele vazio que já o vinha consumindo e se materializou quando partiu e deixou tudo para trás. E tudo, para Travis, eram apenas dois nomes: Hunter (filho) e Jane (mulher).
Durante boa parte do filme, não sabemos como é Jane, por onde ela anda ou o que ela faz. Sabemos apenas que mensalmente ela envia dinheiro para seu filho Hunter, que desde a partida de Travis e Jane está sob os cuidados dos tios. A primeira aparição de Jane ocorre em um momento em que Travis, o irmão, a cunhada e o filho estão assistindo a antigas fitas caseiras. É um momento misto de dor e alegria. É difícil olhar para o passado e perceber que ele simplesmente já passou. A felicidade nas fitas não condiz com o que Travis sente agora.
A trama continua e Travis tenta, aos poucos, reconquistar a confiança de seu filho e reencontrar sua ex-mulher. O vazio de Travis só seria completo quando ele reencontrasse Jane e falasse com ela novamente. O ritmo do filme flui sem pressa. Wenders não se incomoda em criar um ritmo dinâmico (até porque não se encaixaria com o estilo do filme). Um momento importante sobre essa relação de "reconquistar a confiança de Hunter" é quando Travis vai até a escola do menino para buscá-lo e levá-lo de volta para casa.
Na primeira tentativa, ainda estranhando a presença de seu pai verdadeiro, Hunter prefere voltar de carro com um colega de classe. Na segunda, porém, Hunter aceita voltar com seu pai. Durante esse trajeto de volta não há diálogo entre os dois. Mas há sorrisos e interação. Mesmo que os dois estivessem em lados opostos da rua, eles estão conectados depois de muito tempo. E assim, dentre diversas cenas para "conhecermos" mais nosso personagem principal e depois de aproximadamente 1h30 de filme, é hora de pôr o pé na estrada e ir à procura de Jane.
Travis e Hunter (que decide acompanhar seu pai na viagem) partem em busca da mulher da vida dos dois, que está vivendo em Houston. O plano era o seguinte: viajar da Califórnia até Houston e esperar que Jane fizesse o depósito para Hunter no banco (ela sempre fazia o depósito no início do mês, então eles saberiam quando e como encontrá-la).
Hunter espera em uma posição fora do carro, enquanto Travis mantém-se no veículo; não muito afastado, pois não pode tirar o olho de Hunter. O tempo passa, e é então que finalmente Hunter reconhecesse sua mãe dentro de um carro vermelho. Entusiasmado, ele avisa ao pai rapidamente - que está meio dormindo dentro do carro. A perseguição começa e os leva até o local de trabalho dela.
Jane está trabalhando em um estabelecimento onde ela, atrás de uma cabine, "conversa" com quem está do outro lado. Os clientes conseguem ver perfeitamente a moça com quem estão se relacionando, mas tudo o que elas podem ver são o reflexo de si mesma. Essa situação é extremamente deprimente e solitária, mas essencial à proposta do filme. Ser observada por um estranho que você nunca saberá quem é, enquanto pretende estar interessada para satisfazê-lo... Dói. É uma solidão devastadora.
Somente Travis entra no estabelecimento e pede para que Hunter fique esperando no carro. Em seguida, nasce uma das cenas mais lindas do cinema. Travis dirige-se à cabine de Jane. É difícil falar no início. Apenas Jane fala, sem saber que o pai de seu filho está do outro lado. Sem mais nem menos, Travis apenas abandona o local e deixa Jane falando sozinha. A vontade de encontrá-la novamente era enorme, mas faltou coragem para quando isso acontecesse. Todo o roteiro que ele tinha em mente vai por água abaixo, porque a vida é assim: o seu planejamento não significa que irá se tornar real quando o momento chegar. Mesmo assim, ele volta lá no dia seguinte. E dessa vez, diz tudo o que tem para dizer. Vira-se de costas a ela, pega o telefone e começa a contar sua história. O relato dura em torno de 20 minutos, e como eu disse no início do parágrafo: nasce uma das cenas mais lindas do cinema.
Nesses minutos finais de filme, a história de Travis e Jane toma conta e podemos conhecê-los melhor (finalmente). É possível ver quando e como o relacionamento deles desmoronou. Em meio a um passado tão amargo, eles vivenciaram o amor. O amor que destrói. O amor que corrompe o homem. O amor que se torna ciúme; beirando o doentio. Mas esse amor também transformou Travis em um homem melhor, tanto no passado, quanto no presente - e certamente, no futuro. Todos nós cometemos erros. Travis não foi o melhor marido do mundo e nem Jane foi a melhor esposa e mãe. A inexperiência dela, junto à imaturidade dele, deram um fim no que poderia ter sido um relacionamento para a vida toda.
Paris, Texas é um road movie que vai muito além da estrada. Não trata-se de um carro percorrendo caminhos; é, na verdade, um road movie humano, onde somos submetidos e imersos a nós mesmos, fazendo-nos refletir. Traz a nós todas as alegrias e tristezas que a vida pode nos proporcionar. Se em muitos filmes a felicidade é o que há de mais belo e confortante, em Paris, Texas, a solidão é o que há de mais verdadeiro.
Lindo relato sobre um dos meus filmes favoritos. O jeito com que você fala da sua experiência fílmica conduz o texto com uma fluidez formidável, me trouxe várias reflexões e lembranças.