À medida que as logomarcas das produtoras vão surgindo na tela, seguidas da sentença “baseado em fatos reais”, o espectador é embalado por melancólicas notas de piano que definem muito bem o tom desesperançoso e triste que tomará conta da narrativa que vem a seguir. Assim SPOTLIGHT abre-se com um fade in que revela o interior de uma delegacia da cidade de Boston, com seus funcionários falando em tom baixo e cínico sobre um assustador caso de abuso sexual de crianças por um padre, e que sequer formalizou-se uma acusação.
Surgindo como um “filhote” do subgênero “jornalismo investigativo”, este drama dirigido por Tom McCarthy se mostra à vontade ao lado de obras-primas como TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE, O INFORMANTE e ZODÍACO, além de remeter aos excepcionais DEADLINE - USA e A MONTANHA DOS SETE ABUTRES, sem perder suas próprias características, estabelecendo-se também como um belíssimo e contundente exemplar dos últimos remanescentes do cinema pós-11/09, movimento cinético que gerou grandes filmes como DÚVIDA (que também aborda o assédio sexual na igreja), ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ, O ESPIÃO QUE SABIA DEMAIS e SANGUE NEGRO.
Co-escrito e dirigido por Tom McCarthy, o filme gira em torno da equipe da Spotlight, uma divisão investigativa do jornal Boston Globe, que decide perscrutar um caso de assédio sexual que foi acobertado pelo arcebispo Bernard Francis Law alguns anos antes, e cujo próprio jornal dedicou pouca atenção, limitando-o a uma de suas colunas. Conforme as investigações vão se aprofundando, descobre-se uma rede cada vez maior e mais complexa de casos abafados, seja com suborno ou com o descrédito de suas testemunhas, resultando em um dos maiores escândalos envolvendo a igreja católica. Mas o mais brilhante deste roteiro é a capacidade de humanização das personagens através de suas respectivas funções, raramente abrindo espaços para suas vidas pessoais - e quando entramos na seara íntima das vidas dessas pessoas, o choque diante das eventuais descobertas ao longo da investigação os afeta de maneira que sentimos logo de cara o quanto aquele trabalho os esgota emocionalmente e o quanto eles (os moradores de Boston e, por que não, nós) estão vulneráveis a esse tipo de ameaça.
Com uma direção sóbria, mas elegante em suas escolhas, Tom McCarthy constantemente enquadra seus personagens próximos de um “spotlight”, seja na forma de pequenas luminárias, seja na forma de fontes de luz que sugerem uma pista importante e/ou ponto de interesse intelectual/emocional que são fundamentais para a narrativa. Estas fontes de luz também trabalham no estabelecimento das personalidades das personagens - como, por exemplo, ao introduzir uma conversa entre Walter Robinson (Keaton) e Marty Baron (Schreiber), ou na quase constelação de luminárias verdes que diminui e fragiliza drasticamente a figura de Sacha Pfeiffer (McAdams) numa biblioteca.
Estabelecendo uma lógica visual super sutil ao longo do filme, McCarthy não se prende a exibicionismos baratos na condução de sua narrativa. Ao contrário: quando percebemos que determinado momento se trata de um plano-sequência mais complexo, já estamos no final do trajeto, pois a intenção maior do cineasta é justamente inserir-nos na descida ao “inferno” da investigação sem que nos demos conta do tamanho do problema (exatamente como as personagens estão se sentindo). Demonstrando possuir um olhar claro e sensível também para a mise-en-scene de seu elenco, o cineasta consegue estabelecer de maneira discreta e pontuada a natureza independente e “outsider” dos membros da Spotlight ao enquadrar, por exemplo, Michael Keaton deslocado de um círculo formado por seus colegas em uma reunião de editores (e sua posição relativamente acima dos demais apenas reforça a visão que este terá do caso a ser investigado). Auxiliado por uma fotografia e um design de produção igualmente sutis - assim como seus figurinos - McCarthy não se furta ao arriscar suas cenas exibindo-as num tom muito mais claro do que qualquer outro cineasta hollywoodiano optaria, provando que é perfeitamente possível criar uma obra soturna em “plena luz do dia”.
Mas nada dessa sutileza seria possível caso o elenco não demonstrasse um comprometimento em “sumir” dentro de seus personagens. Com exceção talvez de Michael Keaton e Mark Ruffalo - que mesmo super competentes, aparecem um pouquinho mais que o normal, dada suas personas cinematográficas marcantes - o restante do elenco abraça sem reservas as agruras pelas quais os verdadeiros protagonistas da história passaram, e a dor de Rachel McAdams ao constatar o que está sacrificando diante da verdade é extremamente tocante (sem jamais soar piegas), já que a moça se encontra num impasse por sua criação religiosa. Da mesma maneira, percebemos com horror a possibilidade de o mal estar muito mais próximo de nós através da figura desesperada de Brian D’Arcy James em um momento absolutamente brilhante de McCarthy ao acompanhá-lo pelas ruas de sua vizinhança, num raro mergulho nas trevas - estratégia visual constante no já citado TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE, de Alan J. Pakula, que obviamente serviu de inspiração para Tom McCarthy.
Triste, seco, racionalizado na maior parte do tempo, mas elegante na condução de sua trama e no estabelecimento de suas cenas, SPOTLIGHT se mostra uma obra fundamental para que possamos entender que aquilo que nos permite ter fé em algo não deve ser tratado como uma deidade impune a falhas, e isso é retratado em um plano nada sutil (algo raríssimo neste filme) onde uma imponente igreja oprime a imagem de criancinhas brincando, vulneráveis e inocentes, em um parquinho.
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