Desde novos somos ensinados a temer a Deus. A seguir a risca os mandamentos. Somos ensinados a não pecar, a vivermos uma vida em prol da palavra do Senhor. Esse tipo de pensamento característico da igreja católica, que se perdura até os dias atuais, sugere aos novos de idade um imenso temor pelo desconhecido; os inibe de experiências fora dos âmbitos e costumes da igreja e os cria em um cerco ilusório onde o que vale é a misericórdia divina. Dentro desse eixo, mais propriamente dizendo no século XVII nos Estados Unidos, somos apresentados a uma família que acaba de migrar após serem expulsos de sua colônia por divergências de cunho religioso. Seguindo rumores de peregrinos que fugiram da Inglaterra anos antes em busca de terras férteis, os mesmos encontram um pequeno espaço para chamarem de próprio; ao lado de um bosque e dias distante de qualquer resquício de civilização. Cenário inóspito para uma família que, diferente de seus conterrâneos pecadores, só busca o próprio sustento e preza o amor ao Pai.
Roteirizado e dirigido por Robert Eggers, A Bruxa se mostra uma história de terror com suas bases em relatos verídicos sobre uma porção de mulheres que de tempos em tempos fazem tratos com entidades em troca de poderes e desejos. Distante da grade comercial dos filmes de terror atuais, a produção se abstém de quaisquer estereótipos ao emular a total desgraça de uma família que aparentemente se enquadra em um perfil benevolente. Aparentemente, uma palavra que se for analisada de forma fria, cabe para todas as cenas da obra, sem exceção. Nada em nenhum momento está claro o suficiente. A atmosfera claustrofóbica do filme corrobora valores decadentes e vontades reprimidas, esbanjando tenuidade nos personagens. O foco se encontra na filha mais velha e no menino do meio. Em uma das cenas do início fica claro certa veia de curiosidade pelo impuro no pequeno, ele olha por entre a abertura do vestido da irmã, um raso decote, quase inocente, é ali que somos apresentados à primeira amostra do impacto desse padrão de criação no psicológico e imaginário daquelas crianças. Mais uma sugestão a respeito da índole dos costumes dos pais. Seguindo essa linha de raciocínio, é de se duvidar sobre quem passa o dia a pedir perdão pelos seus atos, de quem admite ter o pecado dentro de si. Não por menos, com o decorrer dos minutos, o primeiro sinal de que as bênçãos e orações não foram o suficiente aparecem. O bebê da família some. Após o ocorrido uma cadeia de eventos faz o selvagem dos genitores vir à tona, num espetáculo macabro onde o perdão não mais impera e a dúvida toma conta dos pensamentos da mãe, vemos o desestruturar de um dos símbolos mais poderosos da sociedade em tempos, o demérito da relação materna, crescendo numa gradual gigantesca que se apoia na teoria da filha ter feito um pacto com demônios para entregar a alma dos irmãos pra bruxas que vivem na floresta de arvores secas junto ao bosque. Seria esse o preço a se pagar pelos pecados que desde o início os pais parecem pedir perdão ou é apenas o diabo se aproveitando do flagelo dos membros da família para brincar e satisfazer seus prazeres? Questões como essa cintilam nas cabeças mais pensantes enquanto a obra caminha depressivamente contra a moral e os paradigmas.
Os filtros sociais vão aos poucos sendo derrocados. A impressionante passividade com a violência verbal carrega a psique de quem esta assistindo a um inexorável estágio de aceitação do que a tela mostra, é como presenciar dois dos mais importantes pilares da sociedade serem destruídos. Primeiro o religioso; que engloba a fé humana e a esperança acima de tudo. Depois o familiar; mãe, pai, irmãos e desconfiança. Embora moralmente pareça algo horrível, o filme justifica essa inversão de valores com suas tantas cenas desesperadoras acerca da ignorância “divina” dos membros da família. Cometendo não um ou outro, mas os sete pecados capitais, uns contra os outros, somos questionados sobre tudo que havia sido entregue até ali. Os juízes enfim se mostram como o alvo da penitência, aquilo que eles tanto temiam, monstros, almas cheias de ressentimento e rancor, produtos infelizes de seus próprios erros. Crer que a provação foi merecida e as consequências parte desse processo, apesar de soar crapuloso, é uma interpretação extremamente coerente. Dito isto, a psicologia por trás do argumento denota uma coragem descomunal por parte dos envolvidos no projeto. Não é de hoje que a censura acaba inibindo a veiculação desse tipo de conteúdo para as massas, porque afinal, muitas vezes isso acaba não sendo o que elas procuram.
Mesmo vivendo a era da informação, a quantidade de trabalhos artísticos que difundem ideias para estimular ideias é insuficiente. Tanto esses cutucões em temas de peso na atualidade quanto a nova onda de filmes de suspense independentes que estimulam o pensamento crítico são colaboradores direto para produção de obras como essa. Alguns exemplos sobre o estreitamento das relações humanas até o limite do tolerável e também da exposição de grupos que são um mistério para a mídia, são os recentes Goodnight Mommy, Kill List e o drama urbano de Kleber Mendonça Filho, lançando em 2012, O Som ao Redor. Tais filmes fazem parte de uma lista seleta que vem torcendo o nariz de adeptos ao tradicionalismo, com seus vários pontos de vista, essas obras discutem o indiscutível e transmitem para quem está realmente disposto a se tornar um questionador uma série de ideologias alheias do modo de pensar comum, elevando o mero e trivial conceito de se assistir um filme a uma experiência única de aprendizado e absorção de conhecimento.
Comparando um pouco a obra a seus semelhantes e concorrentes, há também uma grande diferença no tom, narrativa, montagem e estrutura. É um conto que diferente dos do gênero, prioriza o plot e a técnica, abandonando recursos fatidicamente usados para impressionar ou causar sustos. A ideia de a sugestão plantar o medo na família e espectador se mostra como um juízo de valor com infinitas vias de mão. E como se não bastasse a psicologia infame da obra, todos os seus quesitos técnicos colaboram fortemente para a experiência ser uma das mais aterrorizantes. Filmado inteiramente em um formato incomum (1.66 : 1), a ideia desse método é conceber uma perspectiva de isolamento para ambos os lados, personagens e público, como se o quadrado visualizado ao centro das bordas pretas não tornasse possível o vislumbre de mais nada a não ser o pequeno inferno que estamos presenciando. Acompanhado de uma trilha-sonora digna de clássicos do terror e uma fotografia que parece utilizar muito pouca iluminação artificial, a concepção de mundo criada pela equipe responsável pelos cenários e afins não poderia ser mais perfeita. A obra respira originalidade em todos seus aspectos.
Com um dos finais mais poderosos das últimas décadas e da história dos filmes de terror, A Bruxa se mostra um filme sobre quebra de paradigmas, expectativas, conceitos e ilusões frequentes acerca de bem e mal. É o detrimento da frágil cerne humana exposta diante das mazelas criadas por suas próprias cabeças, sugeridas pelos seus delírios cotidianos e reproduzidas como uma constante. Num metafórico ciclo reincidente de um caminho só, a renúncia. Seja lá do que você imaginar.
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