Cronenberg, famoso diretor de obras que desafiam o que está apenas ao alcance dos olhos, fez trabalhos que assim como esse, vão além do ficcional e depuram os pensamentos mais bizarros e fantásticos da mente humana sobre as condições do corpo e da alma. Em Mistérios e Paixões, talvez seu filme mais pessoal, vislumbramos o cárcere de um indivíduo dividido ao meio pelo vício por inseticidas, numa ode ao inimaginável, somos convidados a refletir sobre alucinações e dar sentido a um processo visivelmente degradante.
Escritor fracassado, Bill Lee trabalha como dedetizador de insetos para sobreviver. Porém, seu emprego está por um fio, já que, misteriosamente, o estoque de seu inseticida vive se esgotando. É quando ele descobre que sua mulher está viciada no produto, e, incentivado por ela, experimenta-o, abrindo as portas da imaginação e da loucura para um mundo recheado de absurdos, qual passa a servir a uma agência secreta chamada Interzone, convive com alienígenas e máquinas de escrever que se transformam em agentes secretos mutantes e inicia um tratamento a base de uma droga produzida a partir de centopeias brasileiras. A olhos nus, o que fica claro é que nada está claro, e é exatamente isso, a obra durante toda sua extensão não declara linearidade e tampouco sentido. Dada essa concepção pressuponha-se que em algum ponto específico a moral irá se fazer valer e o diretor nos estregará uma pista do que a sua história quer de fato dizer. Mais uma vez, não.
Indo decisivamente contra a enxurrada de produções que mastigam conteúdo e cospem conceitos, a obra abdica de qualquer sentido singular, optando por uma abordagem mais ampla e inconsciente do que está sendo transmitido. A primeira visita cada qual interpreta a sua maneira os percalços do protagonista, que em dado momento também passa a confundir o tangível do abstrato, numa violenta viagem por espaços preenchidos por seres de outro planeta que a todo custo buscam do personagem uma espécie de consentimento de sua condição e da necessidade dele por aquela vida. Apoiando-se nessa ideia e diante de delírios esporádicos, Cronenberg esmiúça a personalidade do anti-herói para, com suas palavras, salientar várias possibilidades acerca do desígnio daquele universo particular, qual não consigo deixar de citar duas que, assim como sua matéria-prima, soam dementes, em menor e maior grau, respectivamente.
A mais consciente, que deixa a fantasia presente apenas no fantástico, imaginário aponta que como não nos é mostrado o passado do protagonista, rondam-se dúvidas sobre sua ocupação como escritor, o que corrobora um anseio por esses tempos. Dada a proposta, seria plausível interpretarmos essa viagem não apenas como as alucinações de um viciado por drogas exóticas, mas também a materialização dum universo interior de um artista que confunde realidade com ilusão. Esta teoria tem como base a metalinguagem, onde o cinema dramático homenageia as incríveis histórias sobre a insanidade dos homens que necessitam da sua dose diária de loucura para fugirem dos inconfundíveis e tediosos dramas da rotina, compostos sem nenhuma novidade pelos relacionamentos padronizados e semelhantes da sociedade das aparências. Como resposta contrária aos estilos de vida ditos normais, subentende-se que a droga está como desvio da realidade para o protagonista assim como o filme está para nós, diluindo a moralidade e os conceitos que formam qualquer unidade de sociedade, eleva a experiência tanto de personagem e espectador, como de arte e artista. Dando assim sentido para as situações e vazão para algo concreto quando se diz respeito ao destinatário.
A por menor, com bases no existencialismo e epicurismo, demonstra a visão de mundo dum escritor em constante transtorno. As dúvidas são muitas. As necessidades não. Um amor, uma paixão. Uma escolha. A obra esmigalha a censura sobre a renúncia ao amor interpessoal, substituindo esse sentimento caótico pela procura de prazeres para atingir um estado de consciência plena consigo a ponto de expor suas mais distorcidas vontades. É ai que o dilema do todo se dá, o protagonista hei de escolher: a mulher ou o ofício, o amor ou a identidade, qual ou qual. Com o desenvolvimento do filme, nosso homem escolhe também, duas vezes, ou melhor dizendo, com dois tiros, qual o “qual” com que escreveria assim sua história, inspirando, ressuscitando e, por que não, dando novos contornos ao que até ali, era premeditado. Esse viés interpreta a realidade como nada outrora visto, distante das expectativas e do que a sociedade determina, funcionando mais como um ponto de partida para uma explosão de questionamentos acerca do nosso modo de vida.
Seja qual for sua interpretação, Mistérios e Paixões é sujo, amoral, pessimista e complicando, enquanto também inteligente, formador de olhar crítico, orientador de pensamentos, criador, questionador e fora dos padrões. Mais do subgênero deveria ver a luz, porque meio a tantas produções sem agressividade nos tornamos reflexo de um veículo sem nada de especial, nada de marcante, o que transforma nossas vidas em coisa alguma e serve pra que mesmo se não para o passa tempo daquele momento? São nessas viagens loucas que embarcamos e voltamos com a bagagem cheia. Cheia com muita riqueza cultural, intelectual, artística e de valor pessoal, para que um dia passemos por um lugar, em um determinado tempo e nos lembremos daquele dia, daquele filme.
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