De antemão já peço desculpas, mas é impossível não começar uma resenha de A Marca da Maldade (Touch of Evil) por seu início, isto é, justamente por seu plano de abertura. É fácil perceber que se está diante de uma grande obra ao se deparar com os primeiros minutos do filme. Para quem já ouviu falar pelo menos um pouco de Orson Welles, ou viu seu famoso Cidadão Kane (Citizen Kane), não é novidade que o diretor seja considerado um gênio na arte de filmar e compor cenas. Se alguém ainda duvidava disso, creio que voltou atrás de sua opinião logo no começo de A Marca da Maldade. Em um incrível plano sequência, Welles exibe uma zona fronteiriça, caótica como provavelmente todas são, principalmente as que separam os Estados Unidos da América Latina.
No tão falado plano sequência, somos apresentados ao mote que levará os personagens principais a entrarem em conflito. O detetive mexicano Vargas (Charlton Heston) passa com sua esposa, a americana Susie (Janet Leigh), pela fronteira. Em Lua de Mel pelo México, os dois estão felizes e descontraídos. A poucos metros deles, porém, o carro do Senhor Linnekar explode, causando furor e confusão. Um magnata que levava a bordo de seu conversível luxuoso uma stripper. Para investigar o caso, o Capitão Hank Quinlan (Orson Welles) é chamado. A clássica câmera que mira de baixo para cima o poderoso Quinlan, dá o tom da fama do policial turrão que resolve todos os casos. Quando ele está em cena, todos são vistos de seu ângulo, de cima para baixo. Do mesmo modo, todos o veem de um ângulo baixo, alto e dominador. Apesar do caso de atentado, esse primeiro ato serve mais para apresentar os personagens e colocá-los em conflito. Por trás dessa trama, o roteiro de Welles se desenvolve de um jeito muito mais rico e cheio de nuances.
A partir das investigações, Vargas começa a desconfiar da conduta de Quinlan, e é nesse momento em que o conflito principal do filme se desenrola. O atrito entre os personagens é constante, agravado pela diferença de suas personalidades. Vargas é um detetive polido, que acredita na lei e busca a justiça do modo limpo. Já Quinlan é exemplo de detetive estereotipado, durão e sempre disposto a usar a força para conseguir o que quer, acreditando que os fins justificam os meios.
Enquanto esse confronto se desenvolve, Susie vive seu martírio pessoal, sofrendo todo tipo de terror psicológico imposto por uma quadrilha de traficantes, cujo líder foi preso por Vargas, que quer se vingar do seu marido através dela. Temos aí a inversão da femme fatale, personagem frequente no cinema noir. Susie é devota ao marido e até ingênua em certos aspectos. Justamente por isso, todas as ações malévolas recaem sobre ela, a única inocente nesse submundo machista, dominado por homens de pensamento ágil e acostumados com a corrupção. Nota-se até uma diferença no andamento das cenas em que Susie conversa com o marido ou está sozinha, tudo é mais delicado, mais calmo. Por outro lado, quando ela contracena com os vilões, a agilidade volta e isso a deixa atabalhoada e descuidada.
Em contraponto à Susie, há Tanya. A personagem vivida por Marlene Dietrich se aproxima mais da femme fatale clássica. Misteriosa, a cartomante é o porto seguro de Quinlan, servindo como conselheira para ele. Dificilmente saindo de seus domínios, porém, ela se mantém distante do mundo dos policiais. Do mesmo modo, suas características fortes fazem com que esse mundo não se atreve a aproximar-se dela também.
Mesmo com tantos personagens importantes, Orson Welles é quem domina de maneira incrível o filme, seja atrás ou em frente às câmeras. Quinlan é um personagem profundo, com histórias que o levaram a tomar dadas atitudes e definiram seu caráter. Manco e mal-encarado, o detetive é um ex-alcoólatra amargurado, que parece ter falhado apenas uma vez em sua carreira policial, quando não conseguiu prender o assassino de sua esposa. Essa falha o persegue eternamente e é visível em seu rosto. Está ali o tempo inteiro, mesmo com Quinlan pouco mencionando o caso durante o longa.
A corrupção policial sempre foi um tema deveras abordado no cinema, porém as escolhas de Welles são ímpares até para falar do assunto. Os personagens são humanos, divididos pela suspeita e pela culpa, muitas vezes mudando de lado em questão de segundos. O jogo que se desenvolve entre os policiais é saboroso e complexo, mergulhando o telespectador na trama truncada de mentiras e verdades, sempre encobertas pela dúvida.
O primor técnico de A Marca da Maldade é impecável, tornando-o um clássico que segue relevante para o cinema atual. Aspectos importantes, como a composição de planos, estética, direção de atores e roteiro com vários núcleos tornam o filme exemplo do que de melhor existe no cinema. Dado o seu cenário caótico, diálogos ágeis e trama corrida, me atrevo a dizer que A Marca da Maldade serviu de inspiração até para o Cinema Marginal, gênero criado no Brasil. Mas isso pode ser viagem da minha cabeça, melhor parar por aqui mesmo.
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