Desde a Grécia Antiga a narrativa do teatro é dividida em três atos. O cinema herdou esse modo e até hoje segue assim. Há muitas divergências acerca disso, mas o mais aceito é que desde o filme mais artístico até o filme mais comercial tenha essa estrutura. Em alguns mais óbvia e em outros mais nebulosa. Mas ela está. Algo acontece, algo precisa ser feito, algo é feito. Fim. Em Vício Inerente (Inherent Vice, 2014), de Paul Thomas Anderson, a estrutura segue a cartilha tradicional. Porém, enquanto se assiste ao filme isso parece não importar. A história é confusa e não faz muito sentido. Seu fluxo é estranho e até desconexo, entretanto é a própria narrativa que mantém o espectador ligado ao filme.
Vício Inerente se inicia com um plano quase claustrofóbico. Ao fundo temos a praia, com dois surfistas praticamente invisíveis no oceano. Mais a frente, em primeiro plano, duas paredes de casas espremem o horizonte ao fundo. Na parede de uma delas, o número é 4210, quase um 4:20. Letras em branco entram em fade no centro do plano e dão a data e local. Dois garotos descem correndo pela viela enquanto uma narradora inicia sua fala literária. É como ler um livro. No geral, um típico plano de Paul Thomas Anderson. Mas só se percebe a importância desse começo ao final do livro. É como a capa de um livro, que a primeira vista não revela nada, mas que acabada a leitura da obra, se mostra como um retrato em um frame dela.
O voice over inicial continua por diversos momentos de projeção, ajudando o espectador a se acostumar com aquele mundo. O diretor que já trouxe no começo de sua carreira um incrível retrato sobre os anos 1970, em Boogie Ninghts, continua mostrando o espírito selvagem dos dissidentes daquela época. Sempre caricatos e à margem da sociedade, seus personagens transitam tranquilamente por seu mundo, totalmente verossímil a cada tomada. Mas esse é um mundo de mudanças. Mudanças vindas de cima, dos poderosos, das grandes empreiteiras e dos ricos empresários que espremem o modo de vida natural com suas construções e avanços modernos.
O humor pastelão e forçado deixa a obra ainda melhor. A todo o momento as ações são non sense, fora de ritmo e até toscas, o que deixa tudo ainda mais engraçado. O 4210 do primeiro plano, um trocadilho sem dúvida infame, já abre caminho para corriqueiras cenas pitorescas, como no prostíbulo de massagens – só para citar uma –, a risada forçada de Joaquin Phoenix e os diálogos bizarros entre os personagens que se cruzam.
Phoenix esse que a cada filme se reafirma como um dos melhores atores da atualidade. Acostumado a acumular personagens com forte carga dramática, aqui ele está leve dando vida ao hippie maconheiro Doc Sportello. Personagem imprevisível – ou não – que serve como filtro para esse mundo que Anderson retrata, um mundo chapado que não faz sentido algum. A visão de um bêbado drogado, uma visão confusa que nos deixa em dúvida sobre o que é real ou não, mas nem por isso um olhar limitado das coisas.
Apesar de nostálgico e humorístico, o discurso de Anderson é alinhado com a atualidade e muito mais centrado do que aparenta. A especulação imobiliária, a perda de espaço das moradias comuns para grandes empresas, a hipocrisia conservadora e a evolução da cidade sobre a praia. Tudo enrolado em um grande baseado e discutido no maior estilo de filosofia de boteco, mas está ali.
E a sinopse do filme? Qual o enredo? Na real que nem lembro direito, algo sobre desaparecimentos de ricaços e hippies, tráfico de drogas e coisas do tipo. Não que isso importe, melhor mesmo é se divertir nessas linhas (ou diálogos) e curtir a vibe dessa trip. Só cuidado pra não queimar a ponta dos dedos.
*Texto escrito originalmente para o blog Cine Alphaville.
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