Por mais que dê a entender justamente o contrário, O Exorcista investe profundo no teor abstrato do terror. Se para o público esse horror é, possivelmente, ilustrado através da figura da menina em estado de possessão (que remete a algumas passagens já desgastadas na nossa mente: vômito verde, cabeças entortadas, corpos se debatendo contra a cama, etc.), para os personagens daquela história os medos são causados por feridas reabertas, pelo desconhecimento, pelo receio, acima de tudo. O demônio que se abriga no corpo de Reagan funciona entre aqueles indivíduos como uma espécie de catalisador de temores, e das demais fragilidades espirituais / psicológicas do homem: esta sim, a criatura central mais intrigante – e instigante – da análise proposta por William Friedklin, a partir do best-seller de William Peter Blatty.
Impressiona a habilidade do diretor em materializar esses medos (aliás, direção essa que fez jus a sua indicação ao Oscar), seja através dos pesadelos do padre que dividem terreno com a realidade, ou mesmo os olhos impressionados e tristemente impotentes da mãe (numa composição de personagem sublimemente delicada de Ellen Burstyn), que assiste a entidade diabólica destruir gradualmente sua filha enquanto fica de mãos atadas. Friedklin também se responsabiliza de manipular nossa tensão, ao fechar aos poucos seus quadros nos aproximando de um perigo que não vemos, embora pareça iminente por todos os lados (como quando a sua câmera se abeira lentamente da porta do quarto onde a garota se reclusa). Contudo, mesmo cientes da potência do horror diabólico presente naquela casa, tanto os padres quanto a matriarca da família MacNeil encontram-se dominados por outro pavor que os consume: o receio de terem seus medos externados ao mundo, revelados nua e cruamente. Da culpa e do vazio que sente o padre Karras ao desespero e imobilidade da Sra. MacNeil.
O ano era 1973, e abriu as portas para o terror invadir o imaginário dos espectadores que compraram a proposta ousada e intimidadora do filme, afinal de contas, estamos falando uma trama cuja premissa envolve um assunto tabu até mesmo nos dias de hoje, pelo fundo ético e religioso envoltos na questão. E é sobre isso que trata O Exorcista, apontando os medos que dão margens a outros medos, o desconhecimento que se transforma em pânico, e os temores particulares de onde surgem os temores coletivos – e isso sintetiza-se através da cena onde mãe e filha brincam descontraidamente com um sinistro tabuleiro ouija, sem noção da aura sobrenatural e evocativa que aquele objetivo indica possuir, sendo notoriamente o elo que conectou o diabo àquela casa.
O Exorcista propôs uma ruptura nos padrões do horror americano moderno, assim como outros filmes tidos hoje como lendários por feitos semelhantes em suas épocas de lançamentos (e nessa longa lista cabe citar rapidamente O Bebê de Rosemary [Rosemary's Baby, 1968], de Roman Polanski; O Massacre da Serra Elétrica [The Texas Chain Saw Massacre, 1974], de Tobe Hooper...). A quebra se deu pela forma com que Friedklin trabalha o medo de seus personagens – e consequentemente do público –, jamais fazendo do perigo algo óbvio, evidente; sempre está na forma como são confrontados com o mal desconhecido. Não obstante disso, a arma do ser satânico que se apossa da menina é tatear para encontrar pontos frágeis, ferimentos antigos ainda expostos à dor, por isso eles são alertados que não devem dar ouvidos à criatura, pois ela certamente tentará enfraquecê-los, prejudicá-los, reduzi-los. E esse é, como supracitado, o maior medo de todos eles: que suas fraquezas sejam transparecidas, que as marcas de um passado duro de esquecer sejam, eventualmente, ressuscitadas. E nós entendemos isso muito bem, porque, lá no fundo, sabemos que essas angústias também são, lá no fundo, as nossas.
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