"Ajudar! Todos aqui dizem que querem me ajudar!"
Que este filme é um clássico do cinema nacional, não há a menor sombra de dúvidas. Envolvente, bem escrito e dirigido e com cenas marcantes. Esta poderia ser a fórmula perfeita para fazer de um filme algo memorável. Porém O Pagador de Promessas vai além: seu pano de fundo é uma excelente e profunda crítica social, tão importante na época em que foi realizado quanto nos dias de hoje. Promover reflexões acerca da fé e da religião, do papel da imprensa na sociedade, das visões políticas e da convivência entre as classes sociais só causa efeito se realmente possuir fundamentos. O longa-metragem, ganhador da Palma de Ouro de Cannes de 1962, está aí justamente para provar isso. E é isso que o torna verdadeiramente um clássico.
Acompanhamos Zé do Burro e sua esposa Rosa em sua jornada, desde um sítio em algum cantinho remoto do sertão baiano até Salvador, mais especificamente na Igreja de Santa Bárbara. Todas as sete intermináveis léguas são percorridas pelo homem com uma cruz pesadíssima nas costas, do mesmo modo que fez Jesus Cristo na histórica via crucis. Neste ponto, dou uma pausa na sinopse para um pequeno comentário: é incrível a semelhança da jovem Glória Menezes, que interpreta Rosa, com Marcélia Cartaxo no papel de Macabéa, em A Hora da Estrela, filmado duas décadas depois. Como estão parecidas!
Ao chegar na igreja, já de madrugada, o casal encontra-a fechada e decide esperar. E é a partir daí que os problemas começam. A esposa conhece o cafetão da cidade, que vê a inocente moça como uma forte candidata a ser sua amante, tudo debaixo do nariz também inocente de Zé.
Amanhece na cidade, e é dia de procissão. A missa se inicia, como todos os dias, às 6 da manhã. Mas aquele dia não seria comum; seria um dia histórico, que mudaria os rumos daquela cidade. Tudo por causa de um forasteiro, simples pagador de promessas.
Zé do Burro pede permissão ao padre para cumprir sua palavra com a Santa: levar a pesada cruz até a igreja e, assim, quitar sua "dívida". O padre se mostra receptivo e acolhedor até o momento em que descobre o verdadeiro motivo de toda aquela odisseia pela qual passou o protagonista: a vida e a saúde de um burro, animalzinho apelidado pelo nome de Nicolau. O maior absurdo, na visão do padre, estaria por vir: a promessa havia sido feita perante o culto do candomblé. "É o satanás! É um sacrilégio! A Igreja não é um lugar para pagãos como você!" Estavam fechadas, assim, as portas do santuário cristão para o pobre, faminto e cansado Zé.
O fato de um homem nunca antes visto na cidade estar deitado nas escadarias de uma igreja ao lado de uma enorme cruz despertam a curiosidade de todos: do escritor de cordéis, das mulatas baianas vendedoras de quitutes, dos fieis da igreja...e, é claro, da imprensa local. No mesmo dia, o rosto daquele homem já estava estampado no jornal, com um sensacionalismo típico de jornalistas que anseiam por destaque. Zé, que só estava ali para agradecer a graça da santa ao ter curado seu burro, em poucas horas já era visto como um comunista a favor da reforma agrária e contra a exploração do homem pelo homem. Isso atrai os olhares tanto do delegado, com medo de uma agitação social, quanto de capoeiristas e simpatizantes daquelas ideias, que ficam do lado de Zé em seu sofrimento.
Tudo o que ele queria era deixar a cruz na igreja e voltar o mais rápido para casa. Tudo estava dando errado, nada daquilo deveria estar acontecendo. O padre e os representantes locais da Igreja não permitiam de jeito nenhum que seu objetivo fosse concluído, mas o homem não desistiria. Tinha medo de que a santa o castigasse e levasse seu burro embora. O personagem mostra-se fiel à sua promessa, à sua palavra. É um exemplo de perseverança.
E aí eu poderia, então, dissertar sobre o maravilhoso e impactante desfecho dessa história. Mas não o farei. Veja com seus próprios olhos uma das cenas mais importantes para o cinema brasileiro e você irá concordar comigo: é um filme de uma beleza ímpar e de uma qualidade excepcional para a época. Torcer por Zé do Burro é inevitável, assim como é impossível não se revoltar com a ganância, o egoísmo e o egocentrismo de pessoas que, diziam, "só queriam ajudar".
É muito interessante também o retrato feito da Bahia e de Salvador, com seus incofundíveis traços da cultura afro-descendente, que recebe atenção especial em diversas cenas. É o Brasil dos brancos e dos negros, dos ricos e dos pobres, dos "cristãos" e dos "pagãos".
Um filme para ver e refletir "made in Brazil".
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