Produzido em meio à depressão econômica, King Kong é Hollywood em grande auto-estima. Há uma metalinguagem latente na fita, sobretudo no primeiro ato, onde o protagonista cineasta encarna o próprio diretor aventureiro Cooper e a empreitada monumental do espetáculo exótico. É belíssima a cena onde o cineasta ensaia um teste de filmagem com a estrela do filme, especificamente o enquadramento em que contemplamos sob distância o diretor e a atriz mais o cenário de entorno e as personagens coadjuvantes, os atores à parte do olhar voyeur da câmera e por consequência do nosso olho. A despeito da apreciação cenográfica, o plano parece um lapso de autoconsciência do próprio filme: o enquadramento que chama atenção para o artifício da mise-en-scène de forma quase analítica, como numa visão dos bastidores. Tal artifício ganha outra proporção com a fantasia racista da tribo exótica africana, que antecipa os atos derradeiros com o monstro, a monumentalidade dos cenários evocando desde Lang até Griffith (o movimento da câmera adentrando o portal da muralha remete diretamente à tomada no palácio da Babilônia em Intolerância). E há autocongratulação maior do que as personagens fictícias admirando essa ambientação exótica por ser "digna de um filme"? Eis a "retórica do making-off" e a promoção não somente do estúdio mas de toda uma máquina criativa americana, expressa igualmente no (finado) World Trade Center ocupado pela estrela do filme (a conjugação perfeita entre o êxito estadunidense e o êxito hollywoodiano)
O stop-motion, no entanto, subverte essa fabulação. Ao mesmo tempo em que demonstra o domínio técnico e diegético do estúdio (para os padrões da época), ele expõe a construção mesma desse artifício (ao olhar contemporâneo principalmente) além transgressão do mesmo quanto às bordas da narrativa. Tomando o argumento de Paul Wells, a animação subverte a materialidade dos corpos assim como qualquer categoria ortodoxa de classificação social ou cultural. O stop-motion ou desenho animado, especialmente no antropomorfismo, gera uma indefinição de imagem e encenação onde as fronteiras de raça, gênero e espécie tornam-se ainda mais opacas, fluidas, incontroláveis. Não que essa abstração liberte o desenho de sua conjuntura - Kong ainda incorpora uma metáfora racista bastante forte. No entanto, o boneco stop-motion coloca-se não raro num plano a parte do filme mesmo sendo a estrela do espetáculo, protagonizando a sua própria diegese e performance para além dos enquadramentos da narrativa. O longa até brinca com a possibilidade de interação entre os atores live-action e os monstros stop-motion em planos inspiradíssimos com bela profundidade de campo, e muito do efeito lúdico se dá com a justaposição consciente de dois níveis de fantasia quase autônomos entre si, ainda que em contato. Não por acaso, o monstro é a personagem mais complexa da fita ao superar qualquer rótulo de bestialidade ou humanidade - o gorila que destrói os metrôs de Nova Iorque e que se apaixona pela mulher de cabelos dourados. Fugidio, ainda que monumental.
Hollywood cria suas próprias armadilhas. Em nome da verossimilhança, cria artifícios mais e mais elaborados em prol de sua "janela para o mundo" e da credibilidade da fantasia, por mais irreais que as narrativas sejam (e o mesmo se deu nos próprios filmes de animação, se lembrarmos dos aprimoramentos técnicos de Disney e seu estúdio no desenvolvimento da profundidade de campo, anatomia e movimento de personagens, efeitos de iluminação e textura). Contudo, a mera retrospectiva dos filmes deixa explícito o truque de mágica: a cada nova atualização da tecnologia, os efeitos do filme anterior tornam-se mais obsoletos e feios, em alguns casos até primários. Mas se a verossimilhança é uma causa perdida, apreciemos então o artifício em vez de esboçar uma linha evolutiva. Se as pretensões de King Kong parecem hoje risíveis, os embates entre os monstros de massinha ainda preservam enorme vigor de execução, justamente pelo que possuem de fantasioso e imaginativo. E divertir-se com o artifício em seu caráter mais fake é retomar a abstração do próprio faz-de-conta, sobrevivente até nas pretensões retóricas de Hollywood.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário