Adeus, Minha Concubina é quase um filme de metalinguagem. Se a arte de interpretação chinesa no teatro de Pequim em meados do Século XX não tem uma relação direta com o cinema, a própria arte de interpretar tem. Desde o diretor Kaige Chen a seus atores, todos ali são artistas e procuram a perfeição.
Nesse quesito, Kaige Chen lembra Bertolucci em O Último Imperador de 1987, ambos aclamados mundialmente e tratando de um assunto semelhante: a história da China contemporânea. Depois de sair de uma época praticamente medieval, não foram poucos os conflitos que agitaram aquela grande parte de terra. Bertolucci assim como Kaige Chen, dá um tom secundário aos acontecimentos políticos e sociais. Focando no drama de um personagem que nascia em uma época errada. O cenário político está lá, e é preciso entendê-lo para ter uma compreensão melhor do filme (antes ou depois de assisti-lo), sobre isso, falarei logo em frente...
"Governada pela secular Dinastia Mandchu (1644 - 1912,1917), a China foi alvo de expansão imperialista ocidental durante o século XIX. As principais potências interessadas eram Inglaterra, França, Estados Unidos e Alemanha. Em 1911, depois de um movimento liberal burguês, liderado por Sun Yat-sen, foi derrubada a monarquia e proclamada a república chinesa. A monarquia duraria pouco tempo e logo seria derrubada pelo ditador Yuan Shih-k'ai, unindo-se a grandes proprietários rurais chineses, k'ai aumentou a exploração sobre a grande massa do povo. Em 1912, o Kuomintang (Partido Nacional Chinês), fundado por Sun Yat-Sen foi colocado na ilegalidade. Depois da morte de Yat-Sen, em 1925, o partido passou a ser liderado pelo general Chiang Kai-shek, que alterou a linha de ação do partido, tornando-se um capitalismo entreguista subordinado às potências estrangeiras.
O partido receberia colaboração do PCC (Partido Comunista Chinês) e viria a alcançar o poder em 1927, e foi quando Kai-shek rompeu com os comunistas e passou a persegui-los. Consequentemente, os comunistas se tornariam grandes inimigos do Kuomintang.
Orientados por Moscou, os líderes comunistas chineses tentavam organizar um grande movimento revolucionário com o operariado nas cidades, mas só conseguiram fracassos. Foi quando a famosa figura histórica de Mao Tse-tung (que eram um dos líderes do Partido Comunista Chinês) rompeu com Moscou e começou a elaborar a via nacional chinesa para o socialismo, contando com a ampla participação dos camponeses.
Em 1930 eclodiu uma guerra civil, opondo as forças do Kuomintang às tropas comunistas representadas pelo Exército Vermelho de Mao. Os comunistas só viriam a ser vencidos em 1934, depois de longa resistência. Mas os ideais revolucionários só parariam em 1937, quando comunistas e nacionalistas firmaram uma provisória aliança para combater a invasão japonesa (retratada fortemente no filme). Terminada a guerra, em 1945, recomeçariam as hostilidades entre comunistas e nacionalistas. Apesar do apoio norte-americano às forças do Kuomintang, eram as tropas comunistas que obtinham contínuos êxitos.
Seguido a isso, em 1º de Outubro de 1949, a República Popular da China seria proclamada. Já na década de 1960, os chineses começaram a disputar com os soviéticos a liderança do movimento socialista mundial. Em 1964, por exemplo, fabricariam sua primeira bomba atômica. Curiosamente, passariam a estimular uma política com os Estados Unidos (a famosa visita de Nixon à China em 1972).
Durante o período da famosa Revolução Cultural (talvez o ponto chave na política retratada no filme), que durou de 1966 até 1976, várias disputas ideológicas surgiriam. Uns defendiam a modernização econômica do país, outros favoráveis à centralização das decisões administrativas.. enfim, todos esses conflitos marcariam a conturbada Revolução Cultural. A modernização e a aproximação com o ocidente viriam depois, embora isso não significasse uma abertura ao que eles chamariam de "poluição moral trazida pelo liberalismo burguês"."
Sabendo-se disso. Dieyi (nome artístico de Douzi) e Xiaolou são amigos de infância, e durante toda a sua adolescência foram treinados duramente para serem atores na ópera pequinense, na peça histórica Adeus Minha Concubina. Dieyie por ter traços mais femininos (até certo ponto do filme sua sexualidade não fica explícita) acaba treinando para se tornar a concubina; enquanto Xiaolou, com traços mais fortes e masculinos, acaba interpretando o rei. Os maus tratos sofridos pelos meninos diante seu mestre levantam questões éticas e morais sobre o desempenho que um artista precisa ter para chegar em um nível elevado. Em uma passagem brilhante, toda aquela violência extremista torna-se dentro do próprio filme ridícula e ultrapassada, mais à frente, quando Dieyi (agora no lugar de mestre) tenta ensinar um novo aluno com os mesmos métodos que foi treinado, este é deixado de lado e vira-lhe às costas. É a nova era, o passado vai começando a se sentir soterrado e Dieyi, datado.
Assim como o francês George Méliès sofreu problemas com a sua arte e os conflitos mundiais (Primeira Guerra) e viu sua obra ser esquecida e ignorada, Dieyi e Xiaolou lutam artisticamente para sobreviver daquilo que foram preparados toda a sua vida: o ato de interpretar. Dieyi - particularmente - pouco se importa se vai interpretar a peça para japoneses, chineses ou seja lá o que for. Ele só quer estar lá, atuando, com os maiores caprichos e com toda a sua dedicação. O que lhe traz problemas, devido a troca de poderes e ideologias em seu país.
Kaige Chen também é "acusado" aqui de não extrair de seus atores as melhores interpretações possíveis, ora, em um filme sempre há atuações que se destacam mais do que outras. E isso é facilmente desmentido na atuação contida de Leslie Cheung, que interpreta Cheng Dieyi já adulto. É fácil reparar como suas expressões fáceis (atuando dentro do filme ou nele próprio, quase uma metalinguagem, como eu disse) são inexistentes. Mas seus olhos, tanto na infância quando na adultez, representam toda a amargura ou qualquer outro sentimento do devido momento. Ele praticamente chega a falar com os olhos.
Chen viria a fracassar no continente americano com seu Mata-me de Prazer (2002), ainda que fosse esse um filme interessante, não seria recebido bem, principalmente pelo público. Mas é de se destacar a coragem com que Chen crítica o endeusado por muitos sistema comunista chinês. O filme sofreu problemas com a censura de seu país e gerou uma certa polêmica no mundo. Mas não apenas polêmica, afinal, Adeus, Minha Concubina foi laureado com a Palm d'Oro em Cannes no ano de 1993 (empatado com O Piano) e indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e fotografia. Um reconhecimento, principalmente, de atrair os olhos do público mundial ao cinema chinês.
Outra polêmica foi a da homossexualidade de Dieyi, durante o filme nunca há cenas explícitas sobre isso, mas é de sutilezas que Adeus, Minha Concubina é feito. Dieyi era uma criança cujo pai nunca apareceu no filme, sua mãe era uma prostituta que para não deixar o filho viver em um bordel, o larga em um treinamento de atores mirins. E já em uma das primeiras noites de amizade entre Dieyi e Xiaolou, é lá que ambos se conhecem, eles dormem abraçados. Isso só é reforçado quando, já adultos, Xiaolou declara que vai se casar em público e Dieyi sofre com o fato.
O amor pela arte (que lembra o Kabuki do Japão) está presente nos personagens, nos atores que os interpretam e nos de bom gosto, que por algum motivo procuraram assistir essa lindíssima obra cheia dos mais diversos sentimentos.
Que texto legal Mateus, parabéns!