Entre o comercial e o underground situa-se o mais recente filme de Guillermo Del Toro (The Shape of Water, 2017). Colocado por alguns críticos como um romance erótico interespécies (aí você se pergunta por um momento: um filme assim foi indicado ao Oscar?), o romance monstrengo do diretor mexicano situa-se nesses dois pólos, assim como o período em que retrata, das diferenças entre estado-unidenses e soviéticos. Isso tudo nos faz questionar se a Academia cinematográfica dos EUA está mudando ou se Del Toro soube como nunca encaixar suas estórias bizarras (mas amáveis) em um filme rentável, mais que isso, palpável para as senhorinhas de classe média e para as adolescentes dos bairros nobres. Bem, sim, a Academia vem mudando, mas isso ainda é a passos pequenos, passos de pinguim. Para refletir: apenas dois filmes do gênero terror foram indicados ao Oscar de Melhor Filme, O Exorcista em 1974 e O Silêncio dos Inocentes em 1992. Pouquíssimo comparado ao que poderia ser, ou ao que já foi produzido no gênero. Não que The Shape of Water seja um filme angelical e bonitinho, mas ele está longe de esconder a barbárie de homens sacanas e criaturas selvagens (no fim das contas os dois são a mesma coisa, ou pelo menos não muito diferentes), podendo ser considerado um filme a lá horror, porque em aventura não se encaixa, nem em ação ou gospel.
É um filme de indivíduos humanos. Ora, mas lá vem você, essa é a essência do cinema. Não, não é, pelo menos não de Hollywood, ainda que existam pontos fora da curva. Antes fosse, não causaria rebuliço uma cena de masturbação feminina, protagonizada por Eliza (Sally Hawkins) ao acordar. Respondendo a qualquer polêmica, Del Toro pontuou que temos que nos acostumar com a realidade humana, com as necessidades femininas – mostrando uma militância bastante louvável. Mas quem rouba mesmo a cena é Michael Shannon, no papel do agente Strickland, onde nele se concentra uma grande parte de indícios de “fuja deste homem”, preconceituoso, machista, arrogante, narcisista e extremamente violento, Strickland busca em criaturas frágeis (como o monstro e Eliza) perpetuar o American Way of Life. Lambendo uns rabos aqui e ali, subindo de posto, matando um ou outro, sendo um cidadão de bem. Shannon interpreta um cara que todos torcem o nariz quando assistem no cinema (mas não exatamente na vida real, né?), ele nunca tem medo ou receio de empunhar o seu objeto fálico, um bastão que solta uma descarga elétrica violenta. E não, ele não sai matando mosquitos por aí para salvar o bem da sua família, utiliza-o em seres vuneráveis para obter o que quer, em humanos e mesmo naquilo em que nem busca compreender. É o caso típico de: primeiro atiro e depois pergunto. Em determinada cena, seu personagem cheira seus dedos necrosados e parece nem se importar com o odor, sua realidade interna já é um inferno e sua vida já parece apodrecida. Sua mulher e filhas, com uma bela casa e um belo carro, no melhor estilo comercial de pasta de dentes, não escondem a podridão de um agente corrupto que molesta, massacra e ofende.
Neste sentido, os personagens de The Shape of Water são muito profundos. Note-se que eu nem estava falando dos personagens principais, que são o monstro e Eliza, ou somente Eliza. Em algum momento pensei que não haveria espaço para desenvolver tanta coisa em tão pouco tempo, mas até mesmo os cenários (como ambientes domésticos) entregam muito dos personagens, se são submissos ao marido, bem como alegres (como Zelda), se são sonhadores (como Eliza e Giles), ou se são soviéticos envolvidos em um monte de enrascadas (como o russo Hoffstetler). Eliza, na abertura do filme, aparece submersa em seu apartamento, dormindo enquanto a água (que parece também ser um personagem do enredo) ocupa todos os lados, da mesma forma que o filme termina (em água), demonstrando ser uma mulher sonhadora, que apesar de todas as dificuldades que possui, físicas ou financeiras, procura viver além das necessidades básicas, depositando tudo na bondade, na esperança e no amor que logo encontrará. O poeta Leminski provavelmente diria em uma conversa com Eliza: “Isso de você querer ser exatamente o que é, ainda vai te levar além”.
Assim como o diretor, seu cinematógrafo também não é estado-unidense, pois Dan Laustsen é dinamarquês. Pouco conhecido de premiações, ou mesmo de um grupo de cinéfilos mais voltado para o cinema de arte, Laustsen dá uma boa impressão, obviamente que com a participação com Del Toro. De qualquer forma, há um amadurecimento de um diretor de fotografia que sempre se mostrou promissor, mesmo em investidas nem tão corretas, como a Liga Extraordinária (The League of Extraordinary Gentlemen, 2003). Há também, em produção, um futuro projeto entre Laustsen e Del Toro, em um remake de O Beco das Ilusões Perdidas (Nightmare Alley, 1947), mostrando que a parceria dos dois veio para ficar. Mas não é só da internacionalidade das equipes do diretor que quero falar. The Shape of Water possui uma fotografia doce, permeada por verdes e azuis que parecem deixar evidente que o filme foi feito dentro de um aquário. A forma como esconde a criatura, até apresentá-la, senão em partes, pouco a pouco, bem como os ambientes azuis turquesa nas quais é apresentada, combinam com a proposta de mostrar o ser como algo exterior daqueles lugares, mas cada vez mais ambientado a um novo mundo que nunca o irá aceitar.
Não só tecnicamente, mas sensivelmente falando, The Shape of Water é um avanço após o improdutivo A Colina Escarlate (Crimson Peak, 2015), onde Del Toro e Laustsen trabalharam em conjunto depois de mais de uma década. Ali os seres sobrenaturais não tinham uma profundidade tão trabalhada, nem sequer os laços entre os personagens, fazendo tudo parecer muito bonito na direção de arte e na fotografia, mas extremamente raso. É bom ver os avanços de um artista, a aprendizagem após erros passados.
Mas pensando mais profundamente, a “criatura da América do Sul” também não seria uma metáfora? “Uns índios tentaram intervir e isso não acabou legal”, porque Del Toro, apesar de não ser do Sul, também pertence ao Sul dos EUA, ou seja, “o lixo do continente”, como alguns nacionalistas extremados da América do Norte gostam de colocar. Guillermo dedicou a sua indicação de melhor diretor no Oscar a todos os jovens diretores latino-americanos, e nem dá para esconder toda a situação política existente na América da Era Trump. Não seria a criatura da lagoa, maltratada pelas mãos carrascas de psicóticos militares ianques, sendo um sul americano, um sarcasmo político? “É assim que é a diversidade nos Estados Unidos da América”, alguém poderia dizer. A década em que se passa o filme, foi a década dos EUA intervindo em todo o continente, precisamos reforçar. Em determinado momento, na sessão de cinema ao qual assisti, brinquei comigo mesmo ao imaginar que toda a estória fosse história, sendo então verdadeira. Ali um grupo radical assumiria o comando da sala de cinema, protestando contra esses filmes lotados de absurdos, que insistem em mostrar lindas mulheres brancas com criaturas nojentas, “nada a ver com a imagem de deus”, como coloca Strickland, em determinado tempo. Nada a ver com boicotes a filmes com negros protagonistas nos anos 1960? Onde um negro namorava uma branca até a virada cultural do cinema dos EUA? Fazer algo assim poderia estragar uma carreira. E é todo esse contexto político, até mesmo, que torna a criatura das águas tão dimensionalmente humana. A solidão de um velho homem homossexual está nela, bem como a solidão de uma criança latina nas ruas de Nova Iorque.
Assim, até mesmo o termo “criatura” se torna antiquado, havendo um bocado de humanos ali presentes mais “selvagens” que o ser das águas - e se vangloriando por essa desumanidade e selvageria!. Mas Del Toro, felizmente se poupa de torná-lo um ser indefeso, como em determinado momento um senhor mais velho, que mora com Eliza, pontua, ele é uma fera, não podemos mudá-lo, pondera. Ele arranca dedos e é mortalmente perigoso, fazendo uma mistura interessante de “bichinho de estimação”, “paixão da garota estranha” com “será que ele vai matar alguém?”. Esse sentimento é perceptível nas aparições da criatura, em sua amizades.
Mas qual o problema que muitos enxergam em A Forma da Água, afinal? Maniqueísta o filme não é, por favor, o personagem Dimitri, soviético espião, possuía ao menos umas 10 camadas, dava para afundar o monstro no mar do personagem. Indo de cientista apaixonado e fanático a traidor de duas nações. O cineasta mexicano coloca soviéticos e ianques em patamares diferentes, mas quase iguais: psicóticos e neuróticos com sede de perseguição que se sentem perseguidos o tempo inteiro. Com fanatismo militar, é claro. E não, vamos pontuar uma coisa, gatinhos fofinhos não acabam com a cabeça comida em filmes da Disney. Absolutamente não. Não posso dizer se este é o filme definitivo de um criador que ainda não encerrou a sua carreira, mas que este é um dos mais representativos de sua carreira (principalmente por misturar todos os elementos rotineiro em apresentações artísticas: romance, inocência, fantasia, política, contexto histórico e claro, horror, muito horror e sangue), certamente é.
Outra questão, A Forma da Água é um filme feito para agradar premiações? A pergunta certa a ser feita é: algum filme não o é? Ora, nem o filme mais artístico dos filmes artísticos é feito por um diretor que quer ser odiado por todas as premiações, há exceções, claro. Mas não é normal um filme feito para ganhar todas as framboesas de ouro – embora alguns se esforcem. Então, talvez, a pergunta a ser feita fosse: o filme A Forma da Água faz o telespectador de idiota? Não, não o faz em nenhum momento. E também é estranho, em um momento tão importante de renovação em Hollywood, que alguns estejam torcendo o nariz para a película, que de forma tão ampla e completa, traz temas ainda tabus, como masturbação, amor entre espécies (raças, enfim), homossexualidade, solidão etc.
É o filme dos excluídos, como colocado nos comentários do Cineplayers, a muda, o monstro e o artista reprimido (pela sua arte e por sua opção sexual) – todos solitários, sozinhos, vivendo além das sombras, mais adentro da casta social que é representada nos comerciais de shampoos. Escondidos. Em tempos sombrios, onde a negação do outro, em que a xenofobia alcançou níveis inimagináveis depois de 1945 e a partir de 1991, com eventos como a Guerra da Bósnia e o 11 de setembro, é elucidativo um filme fantasioso que trata de tantas questões terrenas. Não há como passar em branco a referência ao Possessão de Andrzej Żuławski (Possession, 1981), onde uma criatura trazia sofrimento e rancor a um casal, na famosa cena de sexo entre uma mulher e uma criatura, o filme de Del Toro traz o lirismo nas cenas de relacionamento físico. Onde não há dor, nem medo, pelo contrário, há a liberação destes; sendo a integração de dois indivíduos excluídos, que através de um elemento em comum, a água, encontram seu universo particular. Não há Bela e nem Fera, no sentido de que não se trata a criatura como Fera e nem Eliza como Bela, ambos são desajustados, integrantes de uma sociedade que não os integra completamente, deixando-os vazios. A Bela de Del Toro não existe, por ser desajustada, por ser feminina demais para a perfeição dos contos límpidos de amor e paixão.
O Monstro da Lagoa Negra (Creature from the Black Lagoon, 1954), grande inspiração e um dos filmes favoritos de Guillermo, mostrava a mesma criatura sendo estudada e capturada por expedicionários ianques. Uma diferença perceptível entre as duas obras, que de diversas formas se conectam e completam, é entre Julie Adams, que como a bela donzela em perigo só sabia espernear e gritar, correndo como vítima, e Sally Hawkins, solitária, mas que sabe lutar pelo que acredita, que se impõe contra os abusos de homens que se utilizam de cargos para exercer influência e difamar “os de baixo”, sendo essa sim, um ser humano para se espelhar e buscar como referência nas telas do cinema. Porque é com muita elegância e poesia, que Hawking e Del Toro nos mostraram que os antigos subversivos e fracassados, a mercê da sociedade, também possuem a sua forma de vingança, aceitar o que são através da sua forma de amar.
Tenho quase certeza que não unicamente na sessão de cinema em que assisti, não sendo uma exclusividade dali, pessoas de diferentes idades saíram com um sorriso no rosto de “isso foi bem estranho, mas gostei”, em uma mistura de incredulidade e felicidade. Parece que A Forma da Água conquistou velhas formas de se enxergar o cinema.
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