Vindo da África do Sul, a "África Branca", Inxeba, assim, com três separações de sílabas, ainda não é "aquele filme da África do Sul", por não retratar a vida de pessoas loiras e esbeltas em sua "branquitude", aquele que vai passar na Sessão da Tarde e que o público em geral nem vai desconfiar se está vendo um filme estado-unidense, britânico ou no máximo dos casos, australiano. Estranha aversão essa a que temos sobre culturas internacionais, que não nos permite desvendar cinemas desconhecidos em plena tv aberta, no melhor dos casos nem a Champions League é assistida quando se trata de um clube da Armênia, sei lá. É mais fácil a classe média alta brasileira ir visitar nas férias o Quênia ou Moçambique do que esta mesma classe social assistir um filme de lá, bem como as classes menos capacitadas economicamente no Brasil fazer quaisquer de ambas as coisas. Embora este debate não possa ser complementado aqui, ele não é disperso no contexto cinematográfico retratado.
É exatamente neste contexto cultural que situa-se "Os Iniciados", como foi nomeado Inxeba no Brasil, para início de conversa, ele foi o azarão do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2018, junto com o senegalês Félicité (2017), ambos estes que não foram adiante na lista dos cinco oficialmente indicados, parando na lista prévia de dezembro. Os dois eram aquele tipo de filme, que se passassem para os principais indicados, certamente seriam aqueles esquecidos, que quase ninguém comenta – mas que por algum motivo chegaram lá. Aliás, o próprio Una Mujer Fantastica, vencedor do Chile, parece ter sido premiado porque sim, sem nenhuma grande questão colocada em cima de seu significado próprio. Pois bem.
A cultura é um organismo vivo, que passa de geração em geração e vai se modificando, no que alguns consideram saudosamente negativo e no que outros consideram bem-vindo e positivo. Suas mudanças geralmente se dão por conflitos de gerações, as lutas de uma minoria da geração Woodstock, por exemplo, pode ter atingido em grandes proporções gerações muito distantes da sua, não tendo resultados necessariamente instantâneos. Em Os Iniciados, a cultura tribal de herança dos antigos povos originários daquela região da África, acaba entrando em choque com a cultura ocidental, “Então você veio aqui para foder com nossos costumes”, diz um sujeito fumando cigarro com uma calça jeans e que anda de carro estilo importado, enquanto utiliza uma cruz cristã no pescoço em forma de colar. Há um pressentimento de que os jovens de hoje (ou os de Joanesburgo, como citado) não são mais tão “machões” como outrora, bem como desprezam costumes ancestrais voltados para o homem como figura principal do mundo. É sobre isso, jovens recebem de seus instrutores maneiras de iniciarem na vida adulta do universo masculino, ao estilo de uma sociedade secreta, enquanto se pintam de branco como antigos guerreiros. Estranho costume de formarem sociedades secretas baseadas na violência e na truculência estes civis que sentem-se colocados de lado no desenvolver da sociedade em que vivem..
Parece haver uma forma – mais historicamente falando, de forma a preservar o passado – de fazer resistir a figura do homem como centro de tudo, como dono da natureza e da humanidade, uma tentativa derradeira de manter um costume que deixa as novas gerações um tanto perdidas. Justamente na minha época é que o universo masculino como centro de tudo perde espaço, o seu espaço verdadeiro e de fato? A figura do velho cowboy estado-unidense, que tenta sobreviver ao novo mundo, não mais a arma (a maleta de trabalho), não mais o cavalo (a camionete), parece encarnar naqueles homens jovens e experientes da África do Sul. Um tanto quanto uma maneira de tentar preservar a imagem do velho machão que manda na aldeia. E é exatamente assim que a cultura existe, como forma de resistência a um “novo” mundo que nasce, na medida que a sociedade evolui tecnologicamente e intelectualmente, então, o que parece, é que o cineasta John Trengove busca filmar não apenas os iniciados, mas os desconfortados, os desajustados desse novo meio social de ser e aonde eles buscam localizar-se.
A nova geração de sul-africanos, ao menos a aqui retratada do povo Xhosa, não quer saber de ficar na terra, amar ela e nela, bem como morrer nela e por ela. O multiculturalismo, o mundo globalizado e o desejo de novos lugares e novas experiências, a cultura camaleônica (como alguns chamam), também chegou aos detentores de alguma particularidade cultural. Os exemplos no Brasil não faltam, os farrapos do Rio Grande do Sul ou o samba clássico na agora terra do funk, do Rio de Janeiro. A questão é que se alguma cultura particular precisa ser preservada, é que ela já está sumindo, e isso causa trauma, ainda mais se ela já não se sustenta na nova sociedade que saiu! Não fazer sentido a uma nova geração (o que nem sempre é o caso de uma particularidade cultural que começa a ficar nas sombras, claro) é o alerta de um fim cada vez mais inevitável. Principalmente quando a questão sexual que a sua cultura ensina, como mostrado no filme, não é aquela que condiz com a sua vida particular.
Polêmico que só ele, Os Iniciados ainda traz uma bela reflexão sobre o amor entre homens no seio da sociedade africana, com o pensamento de que “os homens só sabem pensar nos próprios paus”, criticando a necessidade da masculinidade exagerada, ao mesmo tempo em que mostra relações homossexuais de forma sincera e singela no contexto em que existem. A reflexão de que, os prováveis deuses antigos, mesmo os cristãos e os africanos, provavelmente amavam seus amigos da forma que hoje seria entendida como depravação, como homossexualismo, também desperta conflitos. Não por acaso ganhou o nome em inglês de “The Wound”, no sentido de vexame, ferida.. A cultura, aquela que nos forma externamente e diferencia diversas regiões e sociedades do planeta, fazendo aflorar diferentes formas humanas de se libertar no mundo, também pode acabar por oprimir aquilo que somos. Um presidiário cultural, como pode-se dizer.
O “Moonlight africano”, que não tem quaisquer mulheres em seus 90 minutos de exibição, não é um filme perfeito, o ritmo têm “muitas gorduras” e as filmagens na noite por vezes ficaram escuras demais, fazendo com que em alguns momentos, não se veja e não se entenda o que está acontecendo, mas não é jamais, por sua antropologia da África moderna, um filme dispensável.
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