Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles diz um nome, um endereço, uma cidade e uma vida. É um retrato cru que a cineasta belga Chantal Akerman com então 35 anos resolveu filmar. Akerman ficou muito famosa no mundo do cinema, que também é um mundo machista, onde poucas vezes as mulheres são vistas como grandes pesquisadoras ou criadoras, onde na maior parte do tempo o seu brilho ficou limitado a ser a dama em perigo da narrativa. A belga nascida em Bruxelas perdeu seus parentes mais próximos no Holocausto, incluindo os seus avós, e morreria de forma trágica, ao cometer suicídio depois de uma longa depressão em 2015.
Considerada a sua magnum opus, Jeanne Dielman chamou muito a atenção em 1975, ano em que fora lançado, o seu tempo de duração era demasiado longo (193 minutos), a sua narrativa difícil de acompanhar e seu roteiro extremamente banal. Seu ritmo lento e a sua edição leve são hoje utilizadas de forma constante no cinema europeu, como forma de mostrar algum tormento psicológico, social ou até mesmo mais abrangente. Realmente, acompanhar a rotina de uma dona de casa é uma experiência desgastante, e aí reside a força da sua mensagem feminista. Tive uma experiência demasiada reflexiva ao assistir o filme, veja-se, ao receber a visita de uma dona de casa que acompanhou por 15 minutos uma passagem qualquer do filme de Jeanne Dielman, esta ficou extremamente entediada e até mesmo descontente com o que era mostrado. Um fato irônico e até mesmo alarmante. Não é um bom sinal detestar a sua própria vida retratada na tela..
Cerca de 7 anos antes, na sua primeira experiência cinematográfica em Exploda Minha Cidade (Saute Ma Ville, 1968), naquele ano rebelde e revolucionário, Akerman utilizava-se de um experimento semelhante para atingir os seus objetivos futuros em Jeanne Dielman.. Lá, no preto e branco, acompanhávamos por 12 minutos um efeito semelhante do universo feminino, ainda que bebesse mais da fonte do cinema de Godard e de toda a nova onda francesa de fazer cinema, do que propriamente um estilo próprio da cineasta. Tratava-se de um cotidiano de comédia, onde o trágico da rotina engessada se tornava até mesmo engraçado, de forma intencional. Já em 1972, no seu curta O Quarto (Le Chambre), a câmera dava uma guinada de 360º graus em um quarto ao mesmo tempo em que mostrava o peso do tempo diante da solidão de uma mulher. O tempo e o cotidiano torturador para a mulher são os grandes personagens de sua trajetória no cinema.
O que pode ser visto como extremamente banal, como descascar uma batata, preparar um bife, fazer um café, lavar alguns pratos, caminhar para lá e para cá na cidade fazendo compras para a janta, etc. Aqui acaba ganhando tons críticos e não por acaso este exemplar tão simples de se fazer acabou ganhando tons de manifesto. A libertação da mulher já não era uma crítica em 1975 na Europa, ganhava ares de necessidade.
E certamente Jeanne Dielman não ficou como a maior obra de Akerman, que possui uma filmografia bem extensa, por ter sido a de melhor apelo comercial ou sucesso mundial, porque trata-se de uma obra nada comerciável, até mesmo muito pelo contrário, seu ritmo e sua duração mais espantam plateias do que atraem. É óbvia a maturidade cinematográfica de Akerman após Saute Ma Ville em 1968, e aqui há uma mescla da rebeldia dos anos 1960 com a intelectualidade do cinema da década posterior, que com o polimento de seu próprio trabalho, acabou gerando este belo documento franco-belga. Nomeio-o como documento pois é um filme com mais de 40 anos, assisti-lo hoje é também assistir um pedaço da história do século XX, seja por meios filosóficos ou por meios materiais (como as louças, os carros e o cotidiano em geral).
Jeanne Dielman é mais incisivo e mais cortante, não há sequer uma trilha-sonora para amenizar qualquer desconforto sentido, pelo contrário, seu silêncio é gritante. Durante mais de três horas de filme, devemos ouvir menos de 20 minutos de alguma conversa, e as respostas são sempre inúteis, sempre secas. Dielman é apenas um fantasma, a sombra de uma mulher que busca alguma função social no mundo servindo aos homens de sua vida, agora na representação de seu filho. Sylvain, seu filho, parece sequer perceber a mãe ali, sequer valoriza o seu serviço ou agradece as suas refeições. Assim, acaba por afundar Jeanne ainda mais no seu cotidiano torturante.
Dessa forma, a atriz libanesa Delphine Seyrig que interpreta Jeanne Dielman, é simplesmente o próprio filme. Em uma espécie de Isabelle Huppert de nosso tempo, encarna uma personagem automatizada e cada vez mais fragilizada. Depois de tantos afazeres e tanta negação (da provável conhecida que não vai a sua casa tomar um café, do marido ausente, do filho apartado e assim por diante), sua personagem esboça alguma reação humana e para de simplesmente fazer coisas. Maio de 1968 em Paris certamente mudou o mundo ao pedir a libertação da mulher, e de certa forma essa é uma revolução que ainda não acabou, que segue o seu curso nos rios da história. Pois há no mundo diversas “Dielmans” por aí.
E engana-se quem classifica esta como uma obra "sobre prostituição", como vi em alguns DVD's ou sites, seu foco é sobre a vida de uma mulher através do olhar de uma outra mulher, uma forma de expressão além de rótulos. Mas a nossa personagem onipresente não é necessariamente uma revolucionária que queima sutiãs (que até mesmo foi um movimento que não aconteceu exatamente assim..), ela é extremamente dedicada em seus afazeres e procura fazê-los da forma mais prazerosa possível, embora nunca expresse quaisquer sorrisos. Na sua luta diária, não há ninguém ao seu lado para dividir suas tarefas ou dores. Carrega nas suas costas um fardo, como se a sua residência fosse também o seu casco e dela jamais pudesse sair. A cineasta nos vence pelo cansaço, nos cansa com a realidade da mulher presa aos afazeres domésticos e a submissão ao mundo dos homens, seu silêncio atormenta, nunca adormece.
Por isso o sarcasmo do título do filme, sabemos onde encontrar a senhorita Dielman em Bruxelas, conhecemos o seu número, a sua residência. Até porque ela sequer se desassocia do lugar onde habita, faz parte daquele apartamento e não há vida fora dali para o seu ser individual. De repente, tão associada a rotina, Jeanne parece não estar mais, e seu cabelo já não parece tão arrumado, seus movimentos já não parecem mais tão robotizados, sua indignação com a vida que leva retorna através da raiva com que agora faz suas tarefas.¹ E se Akerman mostrou ao mundo do cinema uma aula de como lidar com o tempo através das câmeras (que Hollywood ainda hoje vem utilizando como uma grande revolução, com exemplos como Gravity (2013) ou Birdman or - The Unexpected Virtue of Ignorance (2014)), o tempo da dona de casa, que esqueceu sua feminilidade, vai se esgotando de uma forma fascinante para quem assiste. A sua comodidade desaparece, tinha que desaparecer, mas seu olhar continua vago e sem direção. Não há escapatórias em um sistema que não abre brechas. Dielman até tenta, mas só restam-lhe lágrimas.
¹ (Não leia quem ainda não assistiu o filme ou não sabe de seu desfecho) Curiosamente, Jeanne Dielman só parece realmente ganhar vida - através de seus defeitos que se tornam cada vez mais humanos - após matar, justamente, um homem.
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