Pão, bandeiras, trens, barro e fome. Pão, leite, povo e armas. Sol, chuva e bandeiras. Pão, sangue, luta e lazer. Pão e preto no branco. Assim é, e não poderia ter sido de outra forma, a visão da Comuna de Paris sob a ótica soviética. O sonho de um governo de trabalhadores elaborado por Lênin e Trotski no então Império Russo, já não era apenas um sonho utópico, a ideia dos revolucionários russos já havia ultrapassado a teoria algumas décadas antes, na tão distante proletária Paris de 1871. Então, torna-se demasiado interessante entender o âmago deste Novij Vavilon de 1929, da forma de como um segundo governo revolucionário, digamos assim, que duraria muito mais tempo, olharia para o primeiro e então único exemplo antes de si próprio.
Certamente demorara até 1928, 1929 para um filme desses ter sido produzido na União Soviética, mas não há dúvida de que em um momento ou outro a Comuna de Paris seria relembrada, talvez não antes, pela própria propaganda do Partido da Revolução de Outubro, que viria a dar o nascimento do cinema soviético. Depois da exaltação aos dias do outubro vermelho, outros temas semelhantes poderiam ser explorados, e a Comuna de Paris, com uma Rússia mais técnica em recursos para cinema, não ficou de fora. Não eram poucos os revolucionários russos que viam no cinema uma estratégia para divulgar a sua própria ideologia política, principalmente em uma sociedade onde reinava o analfabetismo, o poder da imagem tornara-se importante demais para ser descartado. O governo comunista, até então, estava mais firme do que estivera em seus anos anteriores, quando dominava uma pequena parte do país.
Olhando para o passado como tentando entender o próprio presente (já passavam de 10 anos de União das Repúblicas Soviéticas), surgira A Nova Babilônia, sim, a Babilônia mesopotâmica, uma das cidades mais importantes da antiguidade, cercada de mitos, glórias e derrotas. É genial, por exemplo, a cena em que os trabalhadores armados retiram pedras das ruas do chão para montar barricadas, e logo depois de uma invasão a uma loja burguesa, é mostrada em francês a “Nouvelle Babilone” – como que apresentando pela primeira o título do espetáculo. Se a antiga cidade formada no século XIX A.C. pelos amoritas, povo árabe, fundara uma nova civilização que chegou a ter avanços tecnológicos, políticos, civis e artísticos que encantariam o Ocidente séculos depois, a Comuna, formada por franceses esfarrapados, cansados do trabalho quase escravizado, teriam uma passagem mais rápida pelos anos da história. Mas igualmente importante, por sua representação política. Afinal, justamente na França, na Paris de muitas riquezas, emergira uma Paris não tão glamorosa, desejosa pelos ideais esquecidos da Revolução Francesa para os pobres e necessitados.
“A Paris que existiu durante séculos.. já não existe mais. Agora trabalhamos para nós e não para os patrões, assim decidira a Comuna”. Assim decidira a representação de Grigori Kozintsev, famoso diretor da versão russa de Hamlet (1966), e Leonid Trauberg, que trabalharam juntos em diversos projetos nas décadas de 1920 e 1930, inclusive neste Novij Vavilon. A preocupação com a facilidade de ser entendido pelo povo russo condiz com as caretas dramáticas exibidas durante o filme, a apresentação dos personagens através das palavras do antigo cinema mudo, bem como a dicotomia presente entre trabalhadores e burguesia. Aqui a luta de classes ganhava as caretas na tela do cinema, cenários e gestos pomposos para uns e nada luxuosos para os outros. Até mesmo a cor da pele, nada disfarçada no preto e branco, aparecia de forma diferente na tela: além de um ar cansado, os trabalhadores e trabalhadoras pareciam mais sujos, como se tivessem trabalhado o dia inteiro no carvão, para causar um contraste ainda maior com a “higiene” puritana dos patrões.
Sob a chuva que elegantemente limpa as pedras das ruas de Paris, um cidadão tomba, nas suas mãos um giz que escrevera na parede: “Vive la Commune”. Não há como desrespeitar a dramaticidade pura e simples de Kozintsev e Trauberg, ou até mesmo revoltar-se com a diferença entre aqueles que jazem na chuva e aqueles que festejam seus lucros e ganância dentro de uma luxuosa cafeteria. Colocada aos olhos de uma sociedade revolucionária, este magnífico estudo cinematográfico de um acontecimento histórico quase sem precedentes, é um ode a própria luta de classes colocada pela Revolução de 1917. Exemplar é o jogo de ângulos em que o burguês do filme dita sua vingança contra os revolucionários e aparece filmado de baixo para cima, em que seu rosto com raiva preenche à tela em contraposição a diversos cidadãos cansados sem um rosto definido, além de apequenados pela chuva.
Dois dos momentos que considero mais simbólicos e interessantes é a contraposição do início (o levante) com uma das cenas finais (a derrota da Comuna), no levante a trilha-sonora toca a orquestra do Hino Francês, ressaltando um próprio hino de resistência revolucionária com o povo tomando posição; nos minutos finais, quando os burgueses adentram na chuva para sufocar o que restou do proletariado, o Hino Francês também é tocado, ressaltando um verso que até hoje gera polêmica: “Qu'un sang impur, Abreuve nos sillons/Que um sangue impuro regue os nossos jardins”. Uma forma bastante politizada de criticar até mesmo a cultura francesa, para além da opressão de seu próprio povo. A própria chuva, no terceiro ato do filme, assume elementos dramáticos de um personagem à parte.
Um atrativo interessante é o fato da própria Comuna de Paris não ter sido retratado de forma intensa e bem elaborada no cinema – muitos eventos importantes não são, muito embora, certamente a narrativa imposta seja cansativa demais aos que hoje vão ao cinema, até mesmo por que a película não está livre de críticas quanto a sua retratação da história e mesmo do seu roteiro. Trata-se de um exemplar sisudo, que merece ser analisado com respeito aos significados dentro e fora de seu tempo.
Produto de uma geração que soube como poucas utilizar-se das elipses narrativas, é exemplar a forma como objetos fora de contexto fazem muito sentido em imagens que até mesmo se opõem na realidade: um manequim no meio de uma barricada revolucionária, bem como um piano, um santo católico em meio a chuva, enquanto bate a água e corpos são enterrados. Novij Vavilon, para além da propagandística revolucionária, sabe permear muito bem o subjetivo de quem o assiste, dando possibilidades de múltiplas interpretações, sem deixar de ser óbvio.
Historicamente, A Nova Babilônia de Kozintsev e Trauberg é um filme fora do tempo, pois somente um ano antes, o famoso Outubro (Октябрь, 1928) de Sergei Eisenstein não fora bem recebido pelas autoridades soviéticas, visto como um filme “ininteligível para as massas”, algo que este exemplar da dupla de diretores poderia muito bem ser associado também. As passagens dos letreiros são bastante ligeiras, a edição é tão revolucionária como costumava ser os filmes de Eisenstein e a política presente é bastante internacionalista: “Não somos franceses, somos das Comunas”. A questão é que em 1929 a liderança da URSS já estava praticamente consolidada nas mãos de Stalin, e o cinema revolucionário da década de 1920 perderia espaço para o cinema patriótico, histórico-nacional, mais contido em diversos aspectos cinematográficos e políticos. O ano de 1929 e A Nova Babilônia, sobre os dias da Comuna de Paris, poderiam até ser considerados o canto do cisne do cinema que mudou o mundo, vindo de um país que até então produzia filmes bem pobres para o intelecto. Mas jamais, sob nenhum aspecto, deixa de ser um exemplar importante dos filmes daquele utópico país, que nem sempre soube presentear o mundo com as suas maravilhas sociais, o que já não pode ser dito do seu conspícuo cinema.
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