Quando fiquei sabendo do que se tratava o próximo filme de Paul Thomas Anderson, o renomado diretor de clássicos dos últimos anos, quase não acreditei. Não se trata precisamente de um preconceito, eu realmente não gosto do mundo da moda, muito embora seja mais um repúdio as personalidades que a criam do que a sua função social, que também é diversas vezes vista como além do que deveria. Mas aqui, no cinema, o cineasta mantém-se dentro do que espera-se. Seu estilo permanece inconfundível, mesmo quando parece mudar bastante de foco, para uma narrativa que parecia ser bem menos complicada de contar. Comparado aos seus filmes anteriores, Trama Fantasma (Phantom Thread, 2017) me parecia ser um filme feito no automático, sem muita emoção e técnica a ser encontrada. É que parece ser muito menos exigente dos talentos de Thomas Anderson, sempre levando personagens ao limite, com uma violência chocante, dono de tramas apreensivas e cheias de valores morais e filosóficos. Mas aí emerge a situação mais interessante, não é por tratar-se de um filme quase barroco que se trata de um filme desnecessário, porque atrás da elegância do figuro vencedor no Oscar 2018 (por Mark Bridges) há um estudo de ambição, relação, elegância e claro, diferentes cores e tecidos.
Seu personagem principal - que de uma forma bastante peculiar impõe medo a cada vez que fala de sua profissão, como se estivesse pronto a surtar e esfaquear alguém – é Reynolds Woodcock, inspirado em outros dois estilistas famosos, sua personalidade serena e ponderada, elaborada por Daniel Day-Lewis, parece esconder além de um profissional brilhante, um ser negativamente ambicioso, por vezes até mesquinho e trapaceiro. A forma como conduz sua relação com Alma, interpretada pela luxemburguesa Vicky Krieps, é bastante delicada no primeiro encontro. Já no segundo, Alma aparece entregue completamente a figura de seu.. mestre? Com um simples e elegante vestido vermelho (a cor da paixão), o diálogo na casa de Reynolds Woodcock é intrigante. Sempre em uma situação de romance, ou no começo dela, espera-se que os temores de um personagem, homem ou mulher, sejam vencidos pela confiança do outro. Alma parece não causar emoção nenhuma em Woodcock, a não ser pelos números que representa ao entrar em mais um de seus vestidos. Nessa conversa, digna das melhores elaboradas por Thomas Anderson, o costureiro corta todo a romântica aproximação entre ambos, sendo incisivo, conciso e até mesmo deselegante. O que não impede que Alma sinta-se atraída aos encantos de Woodcock.
Lembrando, aliás, que este não é um filme para se assistir com sono (qual que é?). A sua riqueza de detalhes, principalmente psíquicos e sonoros, é estabelecida por uma harmonia entre diálogos, silêncio e delicadíssimos arranjos musicais. Basta reparar, a cada trecho da narrativa que é apresentado, como passam a funcionar esses três pilares que sustentam o que o filme é. Há cenas em que a trilha começa depois um logo intervalo de silêncio, ou mesmo surge após alguma fala que cria algum salto narrativo – de todas as formas, isso melhora o acompanhamento da trama, tornando-a muito elegante e sensível.
Cristóbal Balenciaga, um dos estilistas utilizados como inspiração para Trama Fantasma, um espanhol conhecido como “arquiteto do feminino”, dizia que não se podia acrescentar detalhes fúteis/inúteis em um vestido. Uma rosa não deveria estar lá só pelo motivo de alguém querer que ela esteja, mas por algum motivo realmente estético. Mas será que Paul Thomas Anderson seguiu à risca o próprio ensinamento de Balenciaga? Trama Fantasma possui 2 horas e mais alguns minutos, alguns minutos a mais do que eu gostaria que fosse, mas a verdade é que P.T.A. (como o cineasta é conhecido entre os críticos e fãs) já não tem mais aquela pressa que é costumeira em diretores no início de suas carreiras, mesmo os mais talentosos. Talvez desde Embriagado de Amor (Punch-Drunk Love, 2002) o diretor tente não mais apressar suas tramas, e essa máxima prevalece em seus filmes posteriores, principalmente quando se propõem a estudar personalidades, e sugiro pensar que Trama Fantasma é "somente" isso: um estudo de duas personalidades fortes, em posições econômicas distintas na vida, que se encontram não de forma delicada, mas como um choque; não como a gota de água e a pétala da rosa, mas como dois mundos que de repente colidem.
Essa é uma ideia bastante interessante na filmografia do diretor: em O Mestre (The Master, 2012), Freddie (Joaquin Phoenix) e Lancaster (Philip Seymour Hoffman) causam um encontro explosivo de personalidades e ideias, como se o universo particular de cada um atrapalha-se a ambos; em Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007), Daniel (Daniel Day-Lewis aqui também) e Paul/Eli (Paul Dano) causam danos irreversíveis uns aos outros, ao que parecia ir tudo bem até seu encontro (e a chegada do poder e da ganância exacerbada); até mesmo em Boogie Nights – Prazer Sem Limites (Boogie Nights, 1997) há o encontro de aparentes opostos, onde Diggler (Mark Wahlberg) adentra no universo pornô de Jack Horner (Burt Reynolds) e seus atores, produtores e atrizes. Bem, é precisamente isso, não há motivos para comparar toda essa heterogênea filmografia, há diferenças nas personalidades que P.T.A. estuda, mas elas se dão de formas bem semelhantes. Sendo por vezes autodestrutivas e por vezes não.
Apesar das queixas de que este não seria um filme digno dos talentos de P.T.A., não é nada difícil perceber que não se trata de um desfile grotesco de moda ou de um ode banalizado a luxúria, apesar de bem trabalhados (não poderia ser diferente), os vestidos não são o personagem principal e muito menos o foco de P.T.A. Só estão lá para mostrar a fixação de Woodcock pelo seu trabalho, e talvez um pouco mais.. O crítico Bruno Carmelo do site AdoroCinema vê em Trama Fantasma uma espécie de crítica subversiva ao mundo da elegância pomposa britânica (não foram poucos os comentários pelo mundo citando possíveis contextos políticos que o filme poderia ter, no quesito da política inglesa), onde o homem branco privilegiado entraria em contato com uma mulher com origens mais humildes, revolucionando o ambiente do costureiro, tornando-o mais submisso a Alma. Não vejo este como uma trama feminista, estou mais apto a concordar com o crítico Pablo Villaça, do Cinema em Cena, do qual trata o casal como duas personalidades fortes e até mesmo um estudo profundo das relações amorosas e suas fraquezas. Há até mesmo questões mais problemáticas, como por exemplo: seria a relação entre ambos uma romantização das relações abusivas? Difícil concordar, já que tanto a personagem feminina heterossexual quanto o personagem homem heterossexual, ora ou outra abusam da sua posição para equilibrar o jogo para si. Alma parece endurecer-se na relação com seu amado, ao ponto de tornar-se mais sádica e manipuladora que ele..
De todas as maneiras, Trama Fantasma não é perfeito e não está totalmente bloqueado de críticas, não foi o melhor entregue em 2017 e possui muitas imperfeições, nada que o prive de sua potência cinematográfica. E até concordo que se tratou de um dos filmes mais eruditos e cultos a ser indicado ao Oscar de Melhor Filme em 2018! Filmado em 35 mm, com uma fotografia bem clássica de cenários interiores, é possível sentir a pele dos atores, no telão é perceptível cada ruga e expressão, algo cada vez mais difícil com os exageros do cinema digital.
Deste casal improvável, Alma e Reynolds Woodcock, nascem as mais diferentes perplexidades e dilemas, conjugais e até políticos. Desta vez, depois da sociedade estado-unidense e do mundo do poder e do dinheiro, uma nova vítima. E a elite londrina parece não ficar incólume a mais uma análise psicológica advinda do cinema de Paul Thomas Anderson, ainda que perversamente romântica.
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