Holanda, metade da década de 40 estava por fim, na beira de um rio um casal aumenta o volume do rádio para ouvir uma boa notícia, o país vibra, as tropas nazistas deixam o local, estava feito: a Segunda Guerra Mundial enfim chegara ao fim.
Esta é uma breve passagem de uma das sequências finais de "A Espiã" e atrevo-me a narrá-la aqui devido às circunstâncias que também aqui escreverei.
Nos minutos iniciais do filme tive a impressão de que me deparava com mais uma "épica e gloriosa história de uma heroína injustiçada pelos nazistas em meio a guerra e suas calamidades", nossa protagonista, a bela Rachel Stein (interpretada magistralmente por Carice Van Houten) dá aula a garotos de pouca idade quando é visitada por uma antiga amiga que fez na guerra, logo depois, Rachel, se entregando à nostalgia, aparece em uma bonita paisagem isolada aonde lembrará aqueles difíceis tempos. Facilmente nos recordamos de outras cenas aonde nossos heróis choravam por amigos perdidos e lembravam de seus feitos heróicos: O Resgate do Soldado Ryan, Milagre em Sta. Anna (pra citar algo mais recente) e tantos outros. De cara estes roteiros abrem mão de um certo suspense, afinal (salvo à diante os métodos de ressureição de Jason e cia.) impossível seria que o personagem principal da trama morresse, do contrário estaríamos sendo ludibriados por um fantasma. Contudo, é exatamente aí que "A Espiã" se diferencia de outras obras.
Em meio ao eterno clichê de contar heróicas jornadas de sobreviventes da 2ª Guerra Mundial, aonde o maniqueísmo rola solto, temos a obscura história, porém não menos bela, de Rachel Stein, uma linda cantora judia que se vê encurralada em meio à perseguição nazista. Rachel passa por todos os acontecimentos já contados e saturados nos filmes do gênero: seu esconderijo é bombardeado, seus familiares e amigos são mortos pelos oficiais da SS, seus amigos são torturados, ela tem de mudar de nome para disfarçar sua identidade, etc. Quando se vê em um beco sem saída, Rachel resolve usar sua lábia e beleza para seduzir um oficial alemão e se infiltrar na SS. É interessante citar a leveza e originalidade que a narrativa encontra em contar esta passagem da bela cantora ao mundo nazista: não temos aqui uma personagem com um plano maquiavélico de vingança em mente, mas sim alguém que, ao não encontrar mais oportunidades, recorre aos seus recursos para encontrar um meio de sobrevivência, mesmo que tenha de abrir mão (ou mesmo abandonar) suas vaidades ou crenças culturais.
É deste momento em diante que o filme começa a dar seu ar de genialidade. Os personagens começam a ser estudados constantemente, tamanhos são os acontecimentos que colcam em cheque valores como lealdade e confiança. De primeira mão temos um roteiro que se baseia numa linha-mestra: quem seria o responsável pelo massacre de judeus no rio? Porém esta linha se desfaz quando a trama revela o responsável por tal. Daí desencadeiam-se diversos mistérios à cerca de quem estaria do lado de quem. Mas à medida em que o suspense é quebrado e as dúvidas são retiradas vemos na verdade que o que se rompe são os valores do ser humano em meio à cobiça e a ganância. É aí que Paul Verhoeven vai encontrar cenário para seu filme conversar com a perfeição.
Ao longo do tempo discutiu-se - e ainda se discute - qual seria a essência ou a função da arte. Para não se alongar o papo, vamos nos prender ao cinema. Sem nunca encontrar um lugar comum, o debate sempre esbarra em duas vertentes: uma é o do entretenimento, outra tem um viés mais complexo, é verdade, que é a do usufruto da estética. É bem verdade que a primeira seja a preferida pela massa, portanto, sempre renegada pelos vulgos intelectuais, estes que bem querem a segunda, talvez por ser mais exclusiva ou inacessível, incompreendida pela maioria, é aquela velha história do popular e do erudito. O fato é que o que é bom, é bom. Encontrar um meio termo, aqui, não é ficar em cima do muro, é possível entreter com inteligência assim como é possível transmitir conteúdo com diversão. O cinema de Verhoeven nos dá essa oportunidade e "A Espiã" talvez seja o ápice desta característica. Ao contar uma atraente história de suspense, Paul consegue discutir temas intrínsecos ao assunto de que fala, mas que talvez nunca foram tratados, não com sua complexidade. Ao nos remeter à Primeira e Segunda Guerra Mundiais, o que temos são sempre as mesmas perguntas e, é claro, sempre as mesmas respostas. Vou além, não temos mais perguntas, temos afirmações baseadas em superficialismo e generalização. É como um jogo de lógica: todo nazista é mau, todo alemão é nazista, logo, todo alemão é mau. Todo judeu é bom, os aliados salvaram o mundo, etc. Disse Einstein, entretanto, que a ignorância não é fazer uma pergunta idiota, mas sim não questionar. Paul Verhoeven se apoia nesta premissa e retira, ao final, as máscaras de seus personagens, resultando num jogo mental deveras reflexivo. O diretor não trata os nazistas como caricaturas fatais, mas como seres humanos, não deixando de relatar seus crimes e atrocidades, e dá aos injustiçados pelo nazismo um outro tratamento que não só o de vítima. Isso fica bem claro não só no final do baile com as máscaras no chão, mas em alguns planos e diálogos do filme, como a briga entre holandeses e judeus, a richa entre os próprios nazistas, o ato covarde do canadense, entre outros.
Uma das cenas finais é antológica, comemora-se o final da guerra, tudo está bonito, contudo algumas almas exageram na dose e começam a humilhar os supostos nazistas que por lá ficaram, em meio à esta baderna se encontra nossa protagonista, que parece mais refletir sobre a situação em que se encontra do que sofrer com a humilhação. Rachel é tratada como objeto por aqueles que criticavam o nazismo justamente por tal, irônico, não? Isso fica muito bem retratado ao comparar o tratamento dos nazistas com os do holandeses ao final e na fala do médico Hans ao socorrer a moça.
Todos os quesitos técnicos são competentes, nada demais, salvo a bela construição de uma Holanda quebrada pela guerra. O roteiro tem alguns furos, a fotografia não é magnífica, a trilha não é esplendorosa, não, tudo parece estar devidamente no seu lugar para não ofuscar a beleza de um argumento muito forte recheado por uma história muito interessante. Enfim, "A Espiã" não é um filme perfeito, talvez quando o tema "2ª Guerra Mundial" vir à mesa, nem nos lembraremos dele. Contudo, o filme é um belo exemplo de que na vida se pode dar valor ao preconceito e à rotulação em detrimento ao sempre sábio questionamento, afinal, como o próprio filme diz: todos os homens merece julgamento, até mesmo os mais canalhas.
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