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Análise: Cara Gente Branca - 2ª temporada

O que primeiro me impressionou no filme Cara Gente Branca (2014) é o modo como o diretor Justin Simien parece imitar uma nova estética acadêmica de Hollywood, muito presente em cinemas como o de David Fincher ou Denis Villeneuve, de planos limpos, cores frias perfeitamente demarcadas pelo trabalho de luz e uma simetria que se pretende discreta. A elaboração meticulosa do olhar se contradiz, nesses trabalhos de direção, com uma atitude de distanciamento. Como já serviu muito bem a Fincher e Villeneuve — penso principalmente na sátira desse olhar que se finge distante, mas conduz tudo, em Garota Exemplar —, essa estética cabe perfeitamente ao universo de Simien, esse espaço universitário em que se simula tanto a posição de uma elite intelectual quanto a encenação de uma nova política, produzindo uma incoerência que não é apenas discursiva, mas estética. Então, enquanto os seus personagens resistem às definições da branquitude ao mesmo tempo em que habitam um espaço (o da classe média acadêmica) que sustenta seu elitismo a partir dela, Simien adere aos novos padrões da construção de cena hollywoodiana ao mesmo tempo em que se pergunta o que ainda resiste de uma estética negra no cinema americano.

Esse me parece ser o fundamento do universo criado por Simien, e o que a segunda temporada da série que dá continuidade ao filme recupera em sua sofisticada ironia. A personagem Sam White (Logan Browning), protagonista da série, funciona como uma espécie de justificativa diegética a essa contradição estética exposta por Simien. Sam, uma garota negra filha de uma mãe negra e um pai branco, conduz o programa de rádio que dá o título da série e estuda cinema na universidade. Como cinéfila, resiste a representações problemáticas da negritude (os filmes de Quentin Tarantino e D.W. Griffith são mencionados pelo texto como algumas delas), mas seu diretor preferido é o sueco Ingmar Bergman.

Simien se reconhece como diante de um repertório midiático branco e frequentemente racista, mas há um entendimento, pela série, de que uma total oposição a esse repertório seria, no contexto dessa produção, uma farsa. Primeiro, porque se trata de uma obra também da Netflix, empresa que dá continuidade a muitos dos mesmos padrões de produção da televisão tradicional enquanto celebra um discurso de flexibilidade e inovação. Depois, porque os efeitos desse repertório não são simplesmente reversíveis, eles fazem parte dos afetos, gostos, comportamentos e até da autoidentificação dos personagens naquele espaço.

O texto da série, então, abraça a sátira como um modo possível de se dar conta das contradições dessa experiência — a dos personagens e a do projeto em si. A compreensão da sátira pela série, no entanto, não implica em uma desatenção ao trauma dos personagens. Pelo contrário, o humor aparece como uma apresentação do absurdo, de uma falta de sentido histórica, dos contrassensos que estão na fundação mesma desse espaço da Universidade e de uma resistência negra nela (ou a ela?). A inserção de uma trama de mistério envolvendo o passado da instituição (das fraternidades, imprensa, pesquisa, integração e organizações secretas) envolve, assim, não apenas um caráter de ironia cômica, mas também uma estrutura reconhecida do gênero da fantasia (“Isso é alguma merda de Harry Potter negro”, diz um personagem ao se ver envolvido no mistério).

Como em Corra! (2017), o gesto de se colocar diante da branquitude na série não é o de um mero antagonismo. A hegemonia da branquitude, como o racismo que é produzido por ela, não está fora, externa à experiência dos personagens e à estética da série, uma força contra a qual se pode simplesmente se opor. A resistência dos personagens e de Simien se dá dentro dessa hegemonia, envolvida por ela. Insistir nisso deve ser, de fato, algo que foge a uma expectativa de realismo. Como, então, representar essa experiência se não pelo exagero incongruente? A trama que se codifica em detalhes frequentemente despropositados parece funcionar como um dos principais artifícios a que esta temporada recorre.

Por esse sentido, são os episódios com estrutura cênica mais realista que destoam da temporada. Embora — na ambivalência entre o reconhecimento de conflitos sociais e o aspecto fora da realidade da experiência — isso não seja um problema, é esse conjunto mais estranho de elementos (infantil e lúdico até, de túneis subterrâneos, livros mantidos em segredo, sinais deixados como pistas, etc.) que acredito conter a verdadeira força da continuidade da série.

Na primeira temporada, o texto busca apresentar cada personagem como contrapontos aos estereótipos da negritude no cinema e na televisão americanos, nesta nós temos uma expansão do universo que esses personagens habitam. A perspicácia do texto está, talvez, em expandir esse espaço se aproximando de obsessões tipicamente associadas à branquitude. Que os personagens da série se envolvam nessa estrutura, dispondo-se a essa fantasia juvenil, parece-me a grande sacada do complexo humor de Simien. Se o filme surgiu como algo novo no cinema americano, e a primeira temporada da série como uma repetição um tanto anacrônica dessa novidade, este novo conjunto de episódios leva a própria base da sátira a outro patamar, propondo um outro eixo ao gênero e reconfigurando o que ali mesmo se entendia como resistência.

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