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Bem-vindo a Twin Peaks

Se hoje você assiste a séries de TV como Lost (2004 – 2010) e acha genial essa brincadeira de romper a estrutura básica de espaço-tempo em função de uma trama cada vez mais intrincada e aparentemente ilógica, lembre-se de agradecer principalmente a David Lynch e Mark Frost por terem lançado lá no início dos anos 1990 uma série de apenas duas temporadas que viria a abalar as estruturas dos seriados televisivos norte americanos e definir muito do que eles são até hoje. De tempos em tempos é natural que algumas séries ganhem mais destaque, mas são relativamente poucas as que abrem caminho para uma melhor exploração dos recursos que a televisão pode oferecer. Atualmente muito da vida inteligente que se via no cinema está migrando para a televisão, e não é de se admirar que astros como Glenn Close, Kevin Bacon, Gwyneth Paltrow, Alec Baldwin, Laura Dern, Dennis Quaid, entre outros, estejam acompanhando essa transição. Mas muito antes desse êxodo começar em massa, David Lynch já realizava experimentos cinematográficos no formato televisivo com a série Twin Peaks. Hoje, ela é cultuada por muita gente e tem um valor inquestionável no processo de desenvolvimento que a televisão americana foi passando de uns tempos para cá.

Se Twin Peaks foi tão influente para as séries dos anos 1990 para cá, sua grande referência foi a também cultuada The Twilight Zone (“Além da Imaginação”, no Brasil), que se iniciou em 1959 e que desde então tem ganhado vários remakes, novas temporadas e reapresentações. Ninguém menos que Alfred Hitchcock se encontrava no comando do episódio inaugural da primeira temporada, e desde então a série veio cultivando um conceito muito imaginativo de rompimento com algumas estruturas básicas que constroem a nossa noção de realidade. Mais do que histórias sobrenaturais, The Twilight Zone contava com a criação de um novo conceito de realidade, uma literal nova dimensão, em que o tempo e o espaço físico se diluem e novas leis naturais passam a imperar. A princípio havia toda uma correlação política e social com as corridas espaciais, a Guerra Fria etc., mas conforme essa época foi passando, prevaleceram essas pequenas e intrigantes ideias de remodelagem dos conceitos lógicos mais elementares, sempre com uma sutileza de mestre capaz de enganar o espectador ao envolvê-lo em um falso ambiente de realidade. Em resumo, uma passagem sem volta para uma zona multidimensional em que nada é concreto, embora a princípio o pareça.

Lynch aproveitou muito desses princípios ao desenvolver a trama de Twin Peaks, uma história inicialmente simples sobre a investigação de um agente do FBI depois que o corpo de uma adolescente é encontrado na pacata cidade-título. O que poderia ser apenas mais uma novela noturna, se transformou em um ousado desprendimento dos padrões morais televisivos e fórmulas limitadoras, para o alcance de um resultado muito além do que qualquer um ali poderia imaginar. Deixou para trás qualquer amarra narrativa, rompeu com os limites do formato televisivo e deixou aberta a porta para que qualquer série dali em diante pudesse ousar mais e correr maiores riscos. Não apenas no terreno do suspense/policial, mas de todos os gêneros. Séries como Beverly Hills 90210 (1990 – 2000), por exemplo, que começou tradicionalmente moralista e lotada de merchandising social, aproveitou as deixas de sua contemporânea Twin Peaks e aos poucos foi se desprendendo do politicamente correto com o decorrer de suas temporadas, se tornando um dos maiores sucessos teen daquela geração, e muito influente até hoje.

Twin Peaks conta com a mesma base de The Twilight Zone: começar com uma trama aparentemente comum e linear, e depois bagunça-la com um elemento de caos. O ponto de partida é uma cidade pacata, onde todos os moradores se conhecem e reina um ar de segurança. O elemento de caos surge – um corpo de uma adolescente brutalmente assassinada boiando no rio – e tudo se desestrutura, mas ainda não a ponto de desmoronar. Mas este é apenas o início de tudo, é o elemento que vai ao mesmo tempo chacoalhar as estruturas dos personagens e reuni-los forçosamente. O estupro e assassinato da jovem Laura Palmer vai desencadear a descoberta do lado podre de todos na cidade, que de uma forma ou de outra estão relacionados com a personagem. Seguindo os princípios de Veludo Azul (Blue Velvet, 1986) ao retratar o american way of life como fachada para esconder a podridão da alma de todo o ser humano, Lynch faz de Twin Peaks uma de suas experiências mais radicais como realizador.

A princípio, notamos essa influência na maneira de filmar. Com Twik Peaks, Lynch une princípios utilizados tanto no cinema como na televisão, e extrai o que há de melhor em cada um para construir quase um formato próprio. A migração para a televisão, que também abriu portas para que outros cineastas fizessem o mesmo posteriormente, lhe permitiu brincar com o tom novelesco, a narrativa episódica e uma concepção visual mais artificial (ou mesmo fake em alguns momentos), mas sem perder com isso sua essência como cineasta. O tom surrealista que vem a ganhar forma gradativamente em Twin Peaks obriga a produção a romper com aquela atmosfera folhetinesca barata e tinge a tela com opções áudio visuais pouco utilizadas no formato televisivo, como por exemplo, os movimentos de câmera inquietos (close-ups fora de hora, travellings, câmera giratória, efeitos especiais mais elaborados nas cenas de flashbacks ou nos sonhos dos personagens, câmera subjetiva etc.). Ao mesmo tempo, não larga a mão do melodrama.

E nesse ponto temos uma sacada genial de Lynch, na criação do novelão fictício “Invitation for Love”, assistido por todos os personagens da trama, ao mais exagerado estilo “novela mexicana”, numa trama que serve de espelho à própria trama dos personagens que estamos assistindo. Em vários momentos-chave podemos encontrar parte da solução dos mistérios de Twin Peaks no desenrolar de Invitation for Love (como por exemplo, as gêmeas Jade e Esmeralda da novela, que rimam com as personagens Laura Palmer e Madeleine Fergunson, também idênticas e interpretadas pela mesma atriz). Essa ideia de “novela dentro da novela” proporciona uma nova dimensão à experiência de assistir a série, pois enquanto assistimos Twin Peaks, vemos seus personagens nos dando às costas para assistir Invitation for Love, que por sua vez também pode ser assistido e decifrado por nós, embora pareça não exercer qualquer influência sobre os personagens que o assistem.

Mas se o elemento de caos já mencionado foi capaz de abalar as estruturas da série, é somente com o desenrolar da investigação que Lynch a derruba por terra de vez, num grande jogo de perspectivas, descamando tudo o que havíamos considerado de importante até então para nos situar numa espécie de particular zona do crepúsculo, onde as leis da lógica já não imperam mais e ficção se sobrepõe por completo ao realismo. Emergem finalmente os significados por trás de tantos signos e mistérios, que ao invés de culminarem numa solução, acabam desafiando mais ainda o espectador. A começar pelo próprio nome da cidade/série. Numa tradução literal, seria como “Montanhas Gêmeas” mais ou menos, indicando aí o principal jogo presente na trama: as duplicidades. Lynch é o rei das dicotomias, dos duplos significados, das múltiplas interpretações, enquanto se vale dos mesmos rostos e mesmos cenários. Atribuir mais de um significado ou mais de um personagem a um mesmo objeto/local/ator é sua especialidade, e Twin Peaks explora isso de maneira incisiva. Algumas vezes de forma bem evidente, como as personagens Laura e Madeleine, opostas de personalidade, mas fisicamente idênticas (ambas interpretadas por Sheryl Lee); em outras, de forma mais sutil, como a dupla personalidade de Leland Palmer ou as drásticas mudanças de atitude em Donna, que transita de garota boba apaixonada à femme fatale, de um capítulo para o outro. Todos na cidade de Twin Peaks têm o seu duplo, e isso desencadeia o surgimento de uma espécie de nova dimensão, como se a própria cidade fosse duplicada, ora pacata e habitada por pessoas comuns, ora sombria e habitada por seres saídos de um pesadelo.

Caberia aqui abrir um estudo detalhado de cada personagem e seu respectivo duplo, mas isso ocuparia muito espaço para chegar a uma conclusão semelhante em todos os casos: nada é o que parece ser. Seja Laura Palmer, que é tida por todos como a garota exemplar, caridosa, bonita, simpática, mas que tem seu lado obscuro desvendado conforme o detetive Cooper vasculha sobre seu passado e sobre sua verdadeira ligação com cada um daquela cidade; seja o próprio detetive Cooper, que a princípio segue como a típica figura de um agente da lei em um filme policial qualquer, para depois ser maculado pela atmosfera dúbia de Twin Peaks e deixar seu “lado negro” vir à tona bem no capítulo final, gerando a tendência tão surrada atualmente de se criar heróis de caráter ambíguo, e não mais aqueles de moral inabalável. E nessa de brincar com o “outro lado” de cada um, Lynch finalmente chega ao que lhe mais interessa: a inexatidão do enredo e a inserção de um plano onírico sobreposto à trama.

Em Twin Peaks há uma regência de duas principais dimensões. Se a princípio podemos notar isso pela dupla personalidade de cada um dos personagens, na segunda temporada o diretor acentua a ideia por literalmente materializar em tela um plano de certa forma sobrenatural. Essa exposição talvez seja pouco sutil, quando são dados os nomes aos bois e surgem entidades espirituais, sociedades secretas e lendas fantasmagóricas. Na primeira temporada Lynch flertara com a ideia usando especialmente Margaret Lanterman, a “senhora do tronco”, ou “the log lady”, uma espécie de apresentadora que solta dicas misteriosas antes dos créditos iniciais de cada capítulo, e que carrega pela cidade um pedaço de madeira como se fosse um bebê. Como uma bruxa, Margaret habita a amaldiçoada floresta de Twin Peaks e parece ter a chave de todo o mistério, embora se feche em copas quando o detetive Cooper tenta lhe tirar alguma informação. Se na primeira temporada Lynch apenas rodeia essa temática sobrenatural, a exemplo de Margaret, na segunda tudo ganha uma concretização não tão bem elaborada.

O gigante que aparecia a Cooper em sonhos e outras figuras bizarras que ganham vida quando anoitece em Twin Peaks, em especial no capítulo em que é revelada a identidade do assassino de Laura Palmer, deixam de transitar no plano onírico da trama e finalmente se materializam nas duas realidades com a chegada da segunda temporada. Essas duas dimensões se convergem momentos antes do assassinato de Madeleine, quando todos os personagens subitamente se encaminham para um bar, sem mais nem menos, e assistem a um show esquisitíssimo (que lembra muito a noite de apresentações no Clube do Silêncio, em Cidade dos Sonhos [Mulholland Dr., 2001], filme que Lynch realizaria anos mais tarde) que desperta a aparição de todas as aberrações oníricas que até então só tinham dado as caras nos sonhos de Cooper, como o gigante e o anão dançarino. A reação de cada personagem é assombrosa – uns choram, outros dão risada e tudo vai sufocando até o momento em que Cooper obtém uma revelação que precipitará a solução do caso.

Mais difícil do que cativar o público em volta do mistério da morte de Laura Palmer era manter esse público ainda cativo depois que o grande mistério fosse revelado (embora a intenção inicial de Lynch fosse jamais solucionar o caso e deixar em aberto a identidade do assassino). Foi a partir daí que tudo começou a desmoronar, a audiência começou a cair e a tentativa de retornar à ideia principal foi por água abaixo. De oníricos, os mistérios e as pontas soltas ainda pendentes passaram a receber explicações muito lógicas e redondas, forçando demais a barra para dar um sentido a tudo aquilo. A graça estava justamente em manter a trama nessa suspensão acima de qualquer definição lógica. A partir do momento em que se foi buscada uma “solução” para os entraves ainda restantes, Twin Peaks perdeu toda sua força e caiu no maneirismo. As cirandas amorosas que antes eram só um charme novelístico para distrair o público do grande mistério acabaram ganhando um espaço muito importante (Donna que gosta de James, que era apaixonado por Laura, que era namorada de Bobby, que tem um caso com Shelly, que é casada com Leo; fora o romance vai-não-vai entre Cooper e Audrey), os personagens secundários foram livrados da aura de mistério, deixaram de ser suspeitos, perderam toda sua relevância e o discurso inicialmente interessante sobre o mal existente dentro de todo o homem – a grande mensagem da série – acabou banalizado.

A verdade é que Lynch, depois de ter sua ideia original violada, passou a se interessar mais em fazer cinema, na divulgação de Coração Selvagem (Wild at Heart, 1990) e Sinfonia Industrial N°. 1 (Industrial Symphony No. 1: The Dream of the Broken,1990), deixando a série um pouco de lado e ocasionando assim brigas entre diretores, roteiristas e mesmo atores. Finalizada abruptamente, sem orçamento para uma terceira temporada – apesar de ter deixado várias histórias em aberto para continuações – Twin Peaks foi cancelada, e isso só aumentou sua aura cult. Para tentar aparar algumas arestas que ficaram e deixar sua história melhor acabada, Lynch fez um filme-prequel para a série, Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire Walk With Me, 1992), relatando a última semana de vida de Laura Palmer. Muito inteligente, Lynch usou esse filme para ressuscitar o ar de mistério presente na série até o capítulo da revelação do assassino, jogando informações embaralhadas e confusas que contradizem a solução do mistério encontrado no seriado, reabrindo as feridas e voltando a brincar com a percepção do espectador.

Mesmo com o escorregão no meio da segunda temporada, Twin Peaks é uma série de valor inestimável e mesmo superlativo. Não só abriu caminho para uma revolução na televisão americana como também definiu por completo o amadurecimento de Lynch como artista, processo que havia começado em Veludo Azul. Futuramente viria a realizar pelo menos três obras primas – A Estrada Perdida (Lost Highway, 1997), História Real (The Straight Story, 1999) e Cidade dos Sonhos – sendo este último um trabalho super influenciado pela série. Se não fosse pelo processo pelo qual Lynch passou em Twin Peaks, talvez essas três obras posteriores não viriam a alcançar tamanha proporção. O uso dos espelhos, das cortinas vermelhas, dos telefones pretos, das músicas estranhas (deve-se aqui muito à Julee Cruise) é definidor. A característica das cortinas vermelhas de surgirem sempre quando algo de muito climático está para acontecer – todas presentes sempre em momentos-chave de muitas de suas obras – é ressaltada em Twin Peaks na sequência do sonho de Cooper, numa sala toda forrada de cortinas vermelhas, quando Laura sussurra em seu ouvido o nome de seu próprio assassino. Os espelhos expondo a dicotomia dos personagens, revelando a alma, a verdadeira natureza de cada um, ganham um significado literalista quando Leland olha seu reflexo e acaba vendo o rosto de Bob – o seu demônio interior. Ou mesmo sua pirotecnia usual é bem explorada. Na tatuagem achada no braço de um dos suspeitos do assassinato de Laura está escrito “fire walk with me”, e para quem já viu a série toda e também o filme, dá para entender a importância do fogo explicitada nessa frase.

Ao final da maioria dos capítulos de Twin Peaks, durante os créditos finais, há sempre a foto de um retrato de Laura Palmer sorrindo e encarando o espectador, e não à toa. A cada novo capítulo essa imagem de uma garota feliz e imaculada vai desmoronando, frisando esse fascínio que sua figura exerce no espectador, uma espécie de encantamento pela morte, por uma figura morta e ao mesmo tempo mantida tão viva pela história. De repente aquele sorriso já não se mostra mais tão sincero. Logo a sensação de encarar aquele retrato é a de puro horror. As máscaras sempre caem, o nosso outro lado sempre é revelado e é nisso que Lynch aposta aqui, mas não fazendo de Laura uma criatura horrenda. Pelo contrário, como todo protagonista de uma obra de Lynch, Laura Palmer é uma garota solitária, desesperada para esconder o seu verdadeiro “eu”, por temer que outros descubram o que ela realmente é. Por isso ela sofre, não passa de uma vítima de si mesma, e todos nós sofremos também. Afinal, ninguém é perfeito, e basta encarar por muito tempo o seu próprio retrato para enxergar ali, por trás de sorrisos e poses, algo que você gostaria que ninguém nunca descobrisse.

Comentários (4)

Ricardo Nascimento Bello e Silva | sábado, 21 de Março de 2015 - 12:18

Belíssima análise, Heitor. É uma pena que a série tenha caído na segunda temporada mesmo, mas como você mesmo frisou, o cancelamento da série só a deixou mais cult e depois Lynch nos recompensou com seu cinema. Até hoje, qualquer um que escute o tema do Badalamenti lembra com carinho da série.

Luis Felipe | sábado, 21 de Março de 2015 - 15:17

Melhor série de todas 😁

Rodrigo Giulianno | sábado, 21 de Março de 2015 - 21:11

serie favorita!

Meu box tá guardadinho aqui em minha coleção! Guardando grana para adquirir em bluray no futuro!

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