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A escalada da violência em Breaking Bad

AVISO: Contém spoilers

A série do showrunner Vince Gilligan, mesmo com o foco inicial diversificado em mostrar o pecado em todos nós, nossos desvios  e erros que nos envergonham, nunca fugiu da sua principal meta: mostrar como um homem pacato, o professor de química Walter Hartwell White, poderia tornar-se um impiedoso traficante internacional de drogas após um diagnóstico de câncer inoperável. A história do monstro que existe por trás do cidadão pacato começou como uma série alternativa e logo conquistou o mundo, terminando como uma das séries mais assistidas da história da televisão,  mesmo passando originalmente na TV a cabo. A ascensão e queda de Heisenberg, o perigoso alter-ego do professor White, é contada nos mínimos detalhes, com a narrativa a conta gotas (sessenta e três episódios que cobrem dois anos). Sua jornada, com a intenção na chamada do texto declarada pelo próprio autor envolvem momentos extremos, onde escolhas morais são feitas e transformam seus protagonistas para sempre. E a sede de poder é vista em uma “escalada de violência” que Se parecem marcar a transição do “branco” do nome do protagonista ao “preto” das roupas que usa para compôr sua persona. Veja abaixo algumas cenas e vítimas determinantes.

Domingo “Krazy 8” Molina - 1ª temporada, 3º episódio - “... And The Bag's in The River”

O primeiro assassinato de Walter White é uma prova para ele de como o mundo em que ele entrara é perigoso e sombrio para quem passou a primeira metade de século de sua vida convivendo com alegrias e decepções do cotidiano. Krazy-8 tem sua morte construída de forma longa, criando certa aparente amizade com Walter e ludibriando-o que a situação poderia acabar bem. Não foi o que aconteceu: logo Walter descobriu que o traficante preso guardava um pedaço de porcelana partido de um prato que derrubou em um dos constantes ataques violentos de tosse provocados pelo tumor no pulmão. Acuado, Walter matou Krazy-8 sufocado com a tranca de bicicleta que o prendia pelo pescoço. Seu choro arrependido e pedidos de desculpas ao cadáver foram o momento mais sombrio da primeira temporada e a primeira mácula na alma do protagonista.

Jane Margolis - 2ª temporada, 12º episódio - “Phoenix”

Walter e seu ex-aluno e parceiro Jesse Pinkman sofrem algumas provas de fogo – a desconfiança vingativa de Krazy-8, as explosões psicóticas de Tuco Salamanca – mas conseguem começar a crescer no tráfico de metanfetamina de Albuquerque. O lucro obtido faz os dois ascenderem economicamente – Walter passa a poder custear sua quimioterapia, Jesse pode se mudar para uma nova casa, ambos conseguem estabelecer uma rede de conexões e proteção legal através do advogado de porta de cadeia Saul Goodman. Nessa época, Jesse se apaixona por sua locatária Jane – e ambos se viciam em heroína. Em um momento de ascensão na vida de crime, irrita Walter perder a influência sobre Jesse, não poder confiar nele e, além disso, ser chantageado pela garota. Aí vemos um dos momentos mais sombrios da série: quando surge a oportunidade de salvar Jane de vômito induzido pelo uso de drogas, Walter a deixa morrer. Vemos a luta interna do protagonista entre ajudar ou assassinar pelas reações poucas e precisa do ator Bryan Cranston – seu ar de dúvida, a confusão nos olhos, as mãos que de impostas que se recolhem até a própria boca, as lágrimas mudas. Confirmava-se o cliffhanger que ligava uma temporada à outra: os momentos finais de cada arco mostravam Walter indo cada vez mais longe em seu caminho sem volta.

Traficantes rivais – 3ª temporada, 12º episódio - “Half Measures”

O relacionamento complicado de Walter e Jesse com Gustavo Fring, o grande chefe do tráfico de Albuquerque logo alcança seu ponto mais extremo e perigoso quando Jesse para a querer justiça para traficantes que assassinaram seu amigo Combo e que usam crianças em seus negócios de tráfico e assassinato. Quando o primo menor de idade de sua nova namorada Andrea aparece morto, Jesse resolve tomar satisfação através de vingança direta, apesar das súplicas e artimanhas de Walt para evitar o confronto direto. Vendo que o senso de justiça de Jesse não é parado por estratégia e disputa de poder, o cozinheiro da droga mais pura do estado irrompe em um conflito prestes a começar acelerando um carro em velocidade máxima, atropelando ambos, executando o sobrevivente e afugentando Jesse dali. Resoluto, Walter cruzava uma nova linha, participava diretamente de um confronto de gangues e feria os interesses dos grandes tubarões do negócio que desejavam um negócio tranquilo a qualquer custo.

Gale Boetticher – 3ª temporada, 13º episódio - “Full Measure”

“Com quem você acha que está falando?”, Walter pergunta para a esposa Skyler na quarta temporada. No final da terceira, a situação se agrava para Walter e Jesse – Gus pretende substituir Walt pelo PhD Gale Boetticher, saído da faculdade para o tráfico de drogas. “Você sabe quanto dinheiro eu ganho em um ano?”, pergunta ele meses depois para a cônjuge. Na terceira, Walter teme ser descartado, substituído e eliminado. Jesse é procurado pelos homens de Fring, isolado em um ringue de laser tag fechado. “Deixa eu te situar: eu não estou em perigo, Skyler, eu sou o perigo.”. Walter é levado para uma emboscada na entrada do laboratório de metanfetamina situado nos subterrâneos de uma lavanderia. Com as armas apontadas para ele, ele diz que vai revelar a localização de Jesse, com quem conversara horas antes com o jovem ex-aluno resistindo a perpetrar qualquer ato violento, apesar da sua insistência que não lhes restava opção. Walt revela que estão querendo matá-lo e dá o endereço de Gale, dizendo para Jesse retribuir, que salvou a vida dele, que agora era hora do pagamento. “Um homem abre uma porta e leva um tiro e você acha que fui eu?”. Jesse bate na porta de Gale, aponta uma arma em seu rosto, o capanga Victor corre desesperado para o apartamento. Na lavanderia, Walter manda que abaixem as armas, que agora ele é voltou a tornar-se necessário. Jesse está às lágrimas com a arma em riste, Gale está encolhido de medo, implorando pela vida. A tela escurece. “Não. Eu sou aquele que bate.”

Gustavo Fring – 4ª temporada, 13º episódio - “Face Off”

Lutando para ficar vivo contra o chefe do tráfico que ameaça matar toda a sua família: a quarta temporada é o “low point” de Walter White em Breaking Bad. Ele é alienado de contato com superiores; é repreendido e ameaçado cada vez que tenta reagir; tem o orgulho feriado quando seu cunhado da Narcóticos acha que já descobriu quem é Heisenberg. Jesse, a balança de poder no seriado, tem sua lealdade posta em cheque. Os últimos episódios apresentam o melhor do suspense da série, com Walt e Gus medindo forças em um delicado jogo de xadrez entre dois homens ardilosos, que escondem personas sombrias sob disfarces cotidianos de personagens americanos. Nada prepara para o desenlace final: “Tio” Hector Salamanca junta forças com Walt e vira uma isca explosiva para atrair Gus, que finalmente não prevê o movimento de White e é uma das vítimas de um novo ato abominável de Walter – explodir o quarto de um asilo. Walter volta a sentir confiança depois que Gus, pregando o “último susto” no espectador ao caminhar para fora da sala arrumando a gravata antes de desabar no chão. Mas o último susto de Gus não é nada perto do último susto de Walter: depois de vários episódios tentando reconquistar a lealdade de Jesse, vemos o surgimento do monstro que até então alguns espectadores julgavam ser um homem lutando pela vida - para manipular todos à sua volta, reconquistar lealdades e elencar o adversário como vilão, Walter envenenou uma criança. Todo o sentimento de catarse foi, então, por água abaixo.

Mike Ehrmantraut -  5ª temporada, 7º episódio - “Say My Name”

Muito se diz que Walter White morreu na quarta temporada. O protagonista que conhecemos na quinta temporada não lembra em nada o sujeito pacato, frágil e assustado na primeira temporada. Confiante, ganancioso, mentiroso, que fala de tráfico, assaltos e assassinatos com tranquilidade e de forma metódica. E também orgulhoso, como Mike Ehrmantraut, ex-capanga de Gustavo Fring, descobre da pior forma. Após se negar a dar nomes de ex-funcionários do negócio e dizer algumas verdades para o protagonista quando está prestes a fugir da polícia  (tinham um laboratório, tinham estrutura, mas a vaidade e sonhos de grandeza do cozinheiro de drogas estragaram tudo). Com o ego ferido, Walter comete seu ato mais gratuito em toda a série: mata Mike desprevenido, irritado pelo calor do momento e pelas palavras duras que lhe foram dirigidas. Quando sua fúria passa, arrepende do que fez, constata que não deveria ter feito aquilo, que existiam outras saídas  para resolver as pontas soltas, mas já era tarde demais. Walter já havia cruzado tantos limites que agora matar se tornara algo rotineiro e isento de culpa.

Os prisioneiros – 5ª temporada, 8º episódio - “Gliding Over All”

Agora conhecemos o Scarface de Albuquerque– ou o Michael Corleone, como dá a entender a construção da cena em que Walter encarrega uma gangue nazista de matar nove prisioneiros que eram pagos para ficar em silêncio por Mike. Heisenberg olha para a própria piscina, enquanto uma música pop viajante acompanha nove assassinatos brutais. Ordenando assassinatos por telefone. O submundo de Albuquerque tinha um novo rei, agora desimpedido para ganhar quanto dinheiro quisesse com o seu produto ilegal e de imenso poder destrutivo. Isso deixou o ganancioso protagonista tão confiante que permitiu  a si mesmo até abandonar o negócio quando achou que já havia ganhado dinheiro o suficiente e poderia deixar tudo que fizera até então para trás, sem peso na consciência.

Jack Welker, a gangue supremacista e Lydia Rodarte-Quayle – 5ª temporada, 16º episódio - “Felina”

Mas Walter encarou a dura realidade: no mundo de Breaking Bad, onde “certo” e “errado” são limites traçados, ele teve que pagar por cada um de seus pecados, tendo que sumir para o mundo, tendo suas mentiras descobertas, perdendo entes queridos e sendo odiado pela própria família, sendo devorado por dentro pelo câncer que, antes em remissão, agora voltara feroz. A identidade que assumira agora, “Mr. Lambert”, é o resultado do que Walter White, o cientista curioso, teve curiosidade de vivenciar com Heisenberg, o experimento. Lambert é um homem para quem só a vingança e a reparação importam, mesmo que agora ele saiba que nada do que fizer irá apagar seus crimes. A vingança de Walter White é o único momento verdadeiramente catártico de Breaking Bad, sangue sendo lavado com sangue ainda que tarde demais. Consumido pelo peso de seus erros, só voltou a flertar com a humanidade perdida neste último momento, assumindo que fizera tudo por poder, compreendendo quantas vidas destruíra e recebendo a última oportunidade para realizar uma boa ação ao ver Jesse escravizado pelos traficantes. Após a chacina, vemos num reflexo do maquinário um pálido reflexo do que fora Walter, que cai morto logo depois, vitimado simbolicamente mais uma vez por sua própria criação. Entra “Baby Blue”, do Badfinger, onde o “eu lírico” constata nos primeiros versos: “Acho que eu tive o que mereci”. Como Tony Montana, como Michael Corleone, a morte é uma queda surda, distante e indiferente. E a televisão, depois da incursão de Walter no lado sombrio, nunca mais seria a mesma.

Comentários (7)

Kerlan T. | terça-feira, 17 de Março de 2015 - 14:02

O nível de perfeição dessa série ainda me assombra. A cada foto que vejo relembro as cenas maravilhosas e já da vontade de ver tudo de novo. Ótimo texto!

Danilo Willian de Godoy | terça-feira, 17 de Março de 2015 - 14:40

O grande barato das séries, as bem estruturadas é claro, é que o tempo empregado pode favorecer a construção de um personagem e seu universo. Não dá para explorar toda essa complexidade de White em um filme, pelo menos não com a mesma intensidade.

Muito legal o artigo!

Marcelo Queiroz | segunda-feira, 08 de Fevereiro de 2016 - 20:40

Umas das melhores séries de todos os tempos. Foda em todos os sentidos. Vi inteira já e tô pra rever. E que texto!

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