Um filme pelo cinema, pelo Ceará
A cultura cearense tornou-se reconhecida nacionalmente como a terra do humor e do riso. Reconhecimento gerado por causa de nomes que se consagraram na televisão e no cinema, tais como Chico Anysio, Renato Aragão, Tom Cavalcante e Tiririca. Esses humoristas saíram de sua terra natal para almejar o sucesso no eixo Rio-São Paulo e, por lá, fizeram papéis para programas de humor, filmes de comédia e festivais de piadas. Infelizmente, Chico faleceu ano passado; Renato, depois dos Trapalhões deixou de fazer bons trabalhos e teve como conseqüência sua saída da TV e dos cinemas; Tiririca se ingressou no ramo político e Tom Cavalcante sumiu do mapa. Entretanto, todos os anos surgem humoristas regionais que continuam levando a cultura cearense para o Brasil e para o mundo. E é esse humor peculiar, moleque e zombador que encontramos em “Cine Holliúdy” [idem, 2012], produção originada pelo sucesso do curta-metragem “Cine Holliúdy – O Astista Contra o Cabra do Mal” [idem, 2004]. Todos os dois trabalhos são escritos, produzidos e dirigidos pelo cineasta local Halder Gomes.
Na história do longa temos Francisgleydisson (Edmilson Filho), um exibidor de filmes de luta que mora no interior do Ceará, em meados da década de 1970, junto com sua esposa e o seu filho, e tenta a todo custo manter sua sala de cinema aberta quando os aparelhos de televisão começam a se expandir pelas cidades. Seu trabalho é o que sustenta a sua família e, quando a situação financeira começa a piorar, Francis decide levar todos para outra cidade, na esperança de melhores condições de vida. A trama foi comparada por alguns críticos com a do clássico italiano “Cinema Paradiso” [Nouvo Cinema Paradiso, 1988], por apresentar uma temática semelhante e tratar o cinema como agregador social entre as mais diferentes pessoas. Mas a relação com o filme italiano acaba por aí. “Cine Holliúdy” não se trata de um melodrama ou um romance, é, na verdade, uma comédia hilariante que carrega do início ao fim as características do povo cearense: o palavreado, os trejeitos, as personalidades e as situações próprias do Ceará.
Tanto que, após o término da sessão, é quase impossível um cearense não se identificar com o modo de falar dos personagens. Mesmo pra quem não é da região, durante todo o filme há legendas que traduzem o linguajar “cearensês” e que auxiliam no entendimento das falas. Isso foi uma preocupação do diretor para as demais regiões, que acaba dando certa identidade própria para o filme.
Mas... "peraí", filme brasileiro com legenda?!
Isso mesmo!
O vocabulário cearense é tão diversificado que precisa até de legenda para ser compreendido. E aí está o grande triunfo de “Cine Holliúdy”: uma simples fala peculiar é capaz de gerar altas risadas no público, devido à fácil identificação com o seu povo. Os personagens também contribuem para o divertimento do longa. Alguns ficaram estereotipados – o padre, por exemplo -, mas não chegam a ofender ninguém. Outros são puras representações de certos sujeitos que se encontram no Ceará e que se estendem também pelo nordeste, tais como o bêbado, os torcedores fanáticos por futebol e o “cisso” (alguém que não sabe controlar a fala, repetindo várias vezes a mesma palavra).
Toda essa peculiaridade acaba fazendo de “Cine Holliúdy” mais uma homenagem à cultura cearense do que ao próprio cinema. Mesmo que o motivo da reunião daquelas pessoas seja a exibição de um filme, o que fica claro na tela é a diversificação das várias figuras criadas pelo autor, envolvidas dentro de uma sala de cinema. É estranho perceber que, em um filme cujo título faz referência a mais famosa cidade cinematográfica, existam poucas citações aos clássicos hollywoodianos – a não ser o pôster do King Kong e a alusão de nomes como Bruce Lee e Walt Disney. As homenagens à sétima arte ficam por conta apenas da exibição de filmes asiáticos de kung fu e do faroeste americano.
Os pontos fracos do filme estão em algumas piadas que não funcionam tão bem quanto as outras, o uso de efeitos especiais cafonas – alguns chegam a ser desnecessários – e o desfecho tão abrupto e pouco desenvolvido. Tudo isso é perdoado se lembrarmos do baixo orçamento o qual o filme fora realizado e também da limitação de certos recursos para a produção de um filme feito no Ceará.
Agora, saindo do conteúdo humorístico e partindo para um lado mais sério, o filme de Halder Gomes passa uma importante e clara mensagem sobre a decadência dos cinemas de bairros em detrimento das televisões, e que, mesmo não havendo profundidade do tema no roteiro, nos propõe uma reflexão sobre a atual realidade que a arte cinematográfica se encontra. Segundo afirmações do próprio diretor em entrevistas à imprensa cearense, no Brasil existe cerca de 2.500 salas de cinemas (a maioria instaladas em shopping centers) para uma população de aproximadamente 200 milhões de habitantes, o que é algo desanimador para quem procura seguir uma carreira de cineasta, já que grande parte dessas salas são ocupadas por blockbusters vindos de fora ou por comédias nacionais produzidas pela Globo Filmes. Uma situação que deixa pouco espaço para o cinema independente, que só alcança seu lugar em festivais regionais ou pelo mundo a fora. Já no Ceará, apenas 5 dos 184 municípios do estado possuem salas de cinema. Ou seja, a televisão venceu a popularidade sob o cinema e arte acabou sendo tratada como mercadoria.
Por fim, “Cine Holliúdy” é um filme pequeno, feito com baixo orçamento, de pouca duração e que pode ser alvo de alguns preconceitos por aí, mas carrega um imenso coração e fora feito com grande amor por seus realizadores. Todo filme representa bem as características do seu autor (a trilha sonora brega, as lutas, o humor, a linguagem, o interior e o próprio cinema). A mensagem final mostrada na tela, que condiz à atual realidade, pode ser um tanto desanimadora para os amantes da sétima arte, mas é só lembrar-se do discurso de Francisgleydisson em determinada cena do filme, em que a paixão pelo cinema mostra-se eterna. Podem vir mais aparelhos de televisão, pode vir Internet, podem vir várias outras mídias. O cinema nunca morrerá!
Excelente crítica, ví o cineasta ontem no Agora É Tarde e fiquei curioso, parece uma boa homenagem ao povo cearense que mesmo com seus problemas sociais é um dos mais alegres do país.
Também gostei da observação quanto à falta de visibilidade no cenário nacional devido aos vários blockbusters e filmes da Globo. Acredito que a população em geral também tenha parcela nessa culpa, pois engolem tudo quanto é merlin devido ao seu baixo nível cultural.
Adoro blockbusters de bom gosto, mas também acho que esses tipos de filmes deveriam ganhar mais espaço, mas devemos nos atentar à algo que começa lá atrás, na educação brasileira, que está cada vez pior.
Bacana crítica 😁. Me fez relembrar o humor do Tom Cavalcante e Chico Anysio que você citou e que gosto bastante. 🙂