Um faroeste legítimo e ousado, realizado por um diretor que, a cada filme, deixa sua marca na história do cinema.
Quentin Tarantino é um cineasta ovacionado por uma imensidão de cinéfilos. Em toda crítica sobre cada filme seu lançado é praticamente impossível não encontrar elogios ao seu trabalho. Mas essa aclamação não chega a ser um exagero, já que o diretor é o principal responsável pelo o sucesso de suas obras. Se o roteiro é repleto de frases instigantes e prazerosas ou se os personagens são memoráveis, é porque Tarantino mostra uma eterna paixão pelo texto que escreve; Se o elenco faz atuações marcantes, é porque Tarantino tem o precioso cuidado de escalar a pessoa certa para o papel e fazê-la incorporar o personagem da forma que é precisa. Por mais que eu não queira louvar o diretor – mesmo sendo fã – neste meu comentário sobre “Django Livre” [Django Unchained, 2012], ele será muito lembrando no texto, até porque, como já disse aqui, é quase impossível não elogiá-lo. Mas vamos ao filme...
Os créditos iniciais de “Django Livre” é uma completa referência ao filme de Sergio Corbucci, “Django” [idem, 1966]. As letras em vermelho ao som da música de Luca Bacalov e uma fotografia que relembra os antigos faroestes. Na tela, vemos os escravos acorrentados, caminhando pelo deserto e sendo açoitados por senhores de cavalos. Logo em seguida, somos apresentados ao Dr. King Schultz (Christoph Waltz), um camarada de boa lábia e com muita astúcia. Schultz, que não é mais dentista, como se apresenta, é, no entanto, um caçador de recompensas à procura do escravo que conheça uns fora-da-lei chamados de Irmãos Brittle. Esse escravo é Django (Jamie Foxx). Adiante, Schultz se livra dos senhores de cavalo e compra Django, para depois fazer sua proposta e fechar o acordo. Os dois estabelecem uma boa parceria e, com o tempo, o caçador de recompensas acaba se sensibilizando com a situação do escravo decidindo ajudá-lo a recuperar sua esposa, também escrava, Broomhilda (Kerry Washington).
Essa é a primeira parte do filme, em que Christoph Waltz faz um show de atuação, sempre cômico e surpreendente, e que a história de Django é mostrada. São os momentos que Tarantino joga uma trilha sonora espetacular e filma as paisagens sulistas dos Estados Unidos, podemos sentir com essa técnica o verdadeiro espírito de um faroeste, algo delicioso de se assistir numa tela de cinema. Há também a participação de Don Johnson como o fazendeiro Spencer Gordon Bennet (“Big Daddy”), parte em que Tarantino explora mais a comicidade de seu roteiro com diálogos descontraídos e oferece muitas risadas para o público. A cena da discussão dos sacos é uma das mais engraçadas já escritas por ele. O roteiro, a trilha sonora e Christoph Waltz se encaixam perfeitamente nessa primeira parte.
Mesmo com esse espírito country, “Django Livre” segue uma linha diferente do tradicional western, principalmente, em sua segunda parte, cujo tema da escravidão fica mais evidente. Django e Dr. Schultz partem então para o Mississipi, onde vão resgatar Broomhilda das mãos de Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), cruel mercador de escravos e dono da fazenda Candyland. Django agora se torna alforriado e, assim como Schultz, um caçador de recompensas. Os dois montam um habilidoso plano que envolve uma luta de escravos, a qual Calvin Candie tem muito interesse. O ritmo do filme fica mais ameno e é a partir de então que Tarantino resolve mostrar sua habilidade no vocabulário e nas apresentações dos personagens, sua direção também fica mais engenhosa.
Para servir de exemplo, Calvin Candie é apresentado de costas para câmera, sentado em sua poltrona, assistindo a luta entre dois escravos. No interior da sala está um barman tomando conta das bebidas atrás do balcão, uma morena muito sensual tomando um drink, o guarda-costas de Candie dirigindo os olhos para Django e, também assistindo a luta de mandingos, outro senhor de escravos. Nesse espaço, pela primeira vez no filme, vemos o tradicional uso de violência de Tarantino, com os dois escravos se matando para vencer a luta. Como acontece nos filmes do diretor, a cena violenta não é de graça e tampouco barata. Todos na sala ficam impressionados ao verem um escravo arrancar os olhos do outro – acontece o mesmo com nós, que assistimos - menos Calvin Candie, que se orgulha do seu vencedor e comemora aos gritos. O roteiro começa a ficar mais instigante, com a negociação que se procede entre Candie e os dois comparsas se passando por entendedores da luta de mandingos.
Acordo feito, todos partem para Candyland, onde se encontra Broomhilda. É o momento do filme em que há cenas mais tensas. Django começa a provocar Candie e ser visto com olhares de ódios pelos outros escravos, afinal, naquela época, segundo o filme, não era comum um negro ser visto montado num cavalo e dando ordens em outros homens da mesma etnia. Candie revela o verdadeiro homem cruel que é, mandando cães devorarem um escravo fugitivo e retribuindo as provocações de Django, outra cena que mostra que a violência “tarantinesca” não soa superficial. Logo em seguida, temos mais uma grande aparição de personagem: Stephen, interpretado por Samuel L. Jackson. Tendo já atuado em outros filmes de Tarantino, L. Jackson está completamente à vontade no seu papel, ele faz um escravo da casa grande chato e que começa a se intimidar com a presença de Django no local.
Quando Broomhilda aparece presa dentro de um caixote, no meio da fazenda, a ira do protagonista aumenta e nós ficamos aflitos para saber o que acontecerá logo em seguida. A personagem de Kerry Washington quebra uma grande tradição do cinema de Tarantino, ao contrário de Mia Wallace (Pulp Fiction, 1994), Jackie Brown (idem, 1997), Beatrix Kiddo (Kill Bill, 2003) e Shosanna Dreyfus (Bastardos Inglórios, 2009), a bela esposa de Django é uma vítima das crueldades em que vive e nada pode fazer para vingar-se ou defender-se. Suas feições são delicadas, se mostrando insegura e amedrontada àqueles que a maltratam. Aliás, “Django Livre” quebra outras tradições da filmografia de seu diretor: Tarantino, pela primeira vez em um filme, exibe a nudez, mesmo que por alguns segundos; Calvin Caldie é um vilão totalmente oposto ao Coronel Hans Landa e ao misterioso Bill, mesmo com a maldade viva em carne, é um personagem ignorante, sem escrúpulos e arrogante, sem a estratégia e a inteligência dos vilões interiores; e, como se não bastasse, é o primeiro filme do diretor em que há músicas originais.
A relação mais forte com “Bastardos Inglórios” [Inglourious Basterds, 2009] é a vingança contra dois contextos históricos mais desumanos que já passaram pelo mundo. Se em “Bastardos” vimos judeus americanos metralharem o rosto de Hitler e humilharem os nazistas, em “Django Livre” vemos um escravo alforriado, montado num cavalo, desafiando todos os olhares que são dirigidos a ele, para depois vingar-se numa chacina de sangue contra todos os indivíduos ruins daquele espaço. Neste sentido, o filme dos bastardos funciona de uma maneira melhor, já que, aqui, a escravidão não acaba. Outra semelhança entre os dois filmes é a narrativa: a primeira parte é deliciosa de assistir, a trilha sonora é praticamente um personagem e fica perfeita com a forma que a direção é feita; depois, Tarantino dá uma pausa e deixa tudo silencioso para o elenco e o roteiro se destacarem, há o momento de tensão e, logo em seguida, um impacto chega à tela; por último, uma seqüência violenta e divertida, em que a trilha sonora volta arrebatadora para finalizar a obra.
As músicas como sempre se encaixam perfeitamente nos filmes de Tarantino, a qualidade delas cada vez melhora e é impossível sair do cinema sem ter alguma delas na cabeça. Novamente há a presença de Ennio Morricone, mas também Luis Bacalov, John Legend, Jhonny Cash se destacam e a colocação canções de rap/funk registram a ousadia do cineasta. A longa duração – quase três horas – divide o filme em duas ou três partes. Pela primeira vez, senti uma quebra de narrativa que não havia me incomodado nas outras obras de Quentin Tarantino, que, com sua paixão pelo texto e pelos personagens, acaba não deixando espaço para conclusões fáceis, o que pode ser considerado algo positivo.
É longo, porém, delicioso de assistir. É o bom cinema daquele que faz o público se envolver com a história, de olhos atentos nos momentos tensos e de sorriso no rosto nas partes engraçadas, sem se perder no enredo. Todo o elenco está em perfeita forma, merecendo aplausos e elogios. Contudo, a meu ver, “Django Livre” talvez seja o filme de Tarantino que não pode ser chamado de uma obra-prima, mas nem por isso deixa de ser viciante. Será clássico? Bem, só o futuro poderá dizer, tem tudo para ser memorável, tanto na filmografia do diretor quanto na seleção de filmes do gênero faroeste.
“Setenta e seis anos, Stephen. Quantos negros você acha que viu indo e vindo por aqui? Sete mil? Oito mil? Nove mil? Nove mil novecentos e noventa e nove? Cada palavra que saiu da boca de Calvin Candie não passa de besteira, mas ele estava certo sobre uma coisa: Eu sou um negro em dez mil”.
O texto está bacana, apesar de ser excessivamente descritivo das cenas nos primeiros parágrafos. Quando surgem as comparações com as mulheres dos outros filmes de Tarantino e são comentadas as pontes entre Django livre e Bastardos inglórios, fica bem mais interessante.
Continue exercitando a escrita, rapaz!