Resenha do filme Arca Russa de Alexandr Sokurov
Resenha escrita por Rodrigo Batista Alves do Nascimento em 22 de Março de 2019 como atividade na ETEC Jornalista Roberto Marinho
para o professor Valteir Vaz.
-------------------------------------------------------------------------------------------
Filmado em um único plano-sequência, Arca Russa faz um contraste interessantíssimo com a história do cinema, pois o cinema russo é reconhecido por grandes mestres da montagem, como Sergei Eisenstein, que transformaram a edição cinematográfica em uma forma de arte, demonstrando o poder do corte na construção de significado em um filme.
A opção do diretor pelo plano-sequência contribui imensamente para a imersão do espectador, caminhamos pelo museu na maior parte do tempo na pele do narrador, inicialmente estamos tão perdidos quanto ele, numa atmosfera de sonho que remete aos Surrealistas, é preciso que o filme role para que consigamos responder: afinal, quando e onde estou? Para logo em seguida a dúvida retornar, e por mais absurdo que possa soar, a verdade é que o filme tem uma única tomada e não obedece a uma ordem cronológica.
É importante destacar que Alexandr Sokurov antes de iniciar sua carreira no cinema se formou em História, não à toa a quantidade de camadas temporais profundas em conteúdo contidas em Arca Russa.
O cartaz do filme traz o Hermitage sendo engolido por uma onda gigantesca, Arca Russa claramente conversa com a metáfora bíblica da Arca de Noé, pode também se traçar um contato com a Arca da Aliança, objeto que preservava o que o povo hebreu tinha de mais sagrado, como os Dez Mandamentos, portanto o cerne da intertextualidade aqui é a preservação. O museu é um símbolo da preservação da cultura e da história da humanidade e o Hermitage está entre os maiores do mundo tendo um valor inestimável, especialmente para os russos.
O Hermitage é utilizado no filme como uma ferramenta de síntese de determinados contextos históricos, um canivete suíço, que ao invés de mil e uma utilidades, a cada abertura de porta, mil e um cenários históricos.
Há uma cena muito impactante para o narrador, após a abertura de uma das portas, um homem está montando seu próprio caixão em uma sala cheia de molduras vazias, o Cerco de Leningrado é o momento, antes dele se iniciar uma apressada operação logística de resgate cultural distribuíra o acervo para museus e palácios nos subúrbios da cidade e de trem para os Montes Urais, quando é estabelecido o cerco, o restante das obras é levado para o térreo do museu. O Hermitage resistiu ao longo de sua história às revoluções e guerras, sua presença em tantos momentos cruciais da Rússia o torna mais do que mero cenário, mais do que palco de fatos, o torna personagem do filme.
Ao sair dessa sala o Narrador contextualiza Europa da guerra contra os alemães, Europa não sabe o que aconteceu, não conhece a Alemanha como estado unificado, seu personagem foi inspirado no aristocrata e escritor Marquês de Custine autor do livro La Russie em 1839, que visitou a Rússia de Nicolau I, Custine morreu em 1857, talvez seja essa a data limite do conhecimento de Europa.
“Na Rússia dizem que a liberdade não tem preço...”, essa é uma frase plural dita pelo Narrador no diálogo com Europa com interpretação, tanto inspiradora como muito cruel... Porque o preço foi pago com vidas russas e o significado de liberdade é seletivo, pois na segunda grande guerra se lutou contra a subjugação externa, mas essa frase teria valor no período de tirania czarista? Teria valor no período de autoritarismo seguinte a Revolução de 1917?
O personagem Europa poderia ser um incrível “Senhor do Tempo” da ficção científica britânica Doctor Who, porque há um jogo com o fluxo temporal no filme, cada porta nos dá acesso a um período da saga russa, mesmo que Europa seja inspirado em Marquês de Custine, ele poderia transcender essa persona histórica e explorar a linha do tempo livremente, partindo da Rússia e nos levando com ele.
A compreensão de Arca Russa pede previamente do espectador uma bagagem de conhecimento sobre a história russa e história geral, o filme é raramente didático, é expositivo, semidocumental. Muito provavelmente o conteúdo de Arca Russa irá se clarificar para o espectador após a leitura de resenhas, de uma boa conversa com outros espectadores e de pesquisa, que enriquecerão muito aqueles que buscarem se aprofundar nos contextos históricos trazidos pelo filme.
O dilema russo do quanto a cultura europeia deve influenciar a cultura russa é constante no filme, uma disputa muito antiga com estopim na revolução cultural iniciada pelo czar Pedro, o Grande (monarca de 1672 a 1725) que substituiu os sistemas social e político tradicionalista e medieval pelo modelo ocidental baseado no Iluminismo. Na segunda metade do século XIX um grupo de eslavófilos se manifestou entre os intelectuais, estava armado o ringue, ocidentalistas contra eslavófilos, uma luta eterna, com um lado prevalecendo ao outro ora sim, ora não, resultando em um hibridismo de culturas. O próprio Hermitage é um ótimo representante desse contato, incluídas em seu vasto acervo estão obras europeias e russas.
A linguagem esopiana no quadro Nascimento de São João Batista nos é revelada quando Europa e o Narrador se encontram com dois homens, um professor de medicina e um ator em um dos salões do Hermitage, um deles comenta que o gato e uma galinha são figuras simbólicas, a galinha representa a cobiça e a avareza e o gato o cinismo e a crueldade, essa linguagem com elementos que aparentemente são simples, mas possuem significados ocultos e muitas vezes complexos transborda pelo filme, seja pela tirania escondida no luxo, seja pelo prenúncio de mudança escondido nos momentos finais do filme.
A nobreza é retratada por vezes de forma infantilizada, como na cena em que Catarina, a Grande corre dizendo que precisa “fazer xixi” após uma apresentação teatral, também de forma fútil e inocente, no sentido de alheia à realidade, às condições precárias, de miséria e fome, que abatiam a população russa, majoritariamente rural em um período em que o continente Europeu experimentava a Revolução Industrial. Há pobreza e opressão por trás da pompa que a nobreza saboreava, podemos entender os meios dessa opressão pela demonstração do poderio militar russo, com os militares marcando presença em tela.
O filme dialoga constantemente com outras artes, se passando em um museu, a conexão com a pintura e a escultura é esperada, entretanto o teatro, entramos nos bastidores de uma peça, a música, há trilha sonora quando há uma orquestra em cena, e a dança, no baile final vemos a mazurca, dança tradicional de origem polaca, deixam sua marca. É impressionante a quantidade de figurantes em cena, com figurino impecável, o trabalho da arte nesse filme merece destaque, fez jus ao Hermitage. Além de ser um marco logístico para o cinema mundial a organização da gravação. Gravação e não filmagem, porque a opção pelo plano-sequência obrigou Sokurov à utilização de uma câmera digital para superar o limite de minutos da película cinematográfica.
O aspecto nostálgico dá as caras na despedida do baile, o próprio Europa, nosso guia pelo Hermitage, que em uma tentativa de encaixar o filme narrativamente como sendo uma Jornada do Herói, poderia assumir papel de mentor, se despede do narrador, diz que ficará ali, esse “ali” sabidamente por nós chegará ao fim, de forma brusca a ordem vigente será rompida... E quem será o herói guiado por Europa? A própria Rússia? O espectador? Sokurov, que empresta a voz ao Narrador? A resposta é uma pergunta, como muitas obras de arte fascinantes, o significado é plural.
Arca Russa é um filme para ser apreciado tanto pela técnica como pelo conteúdo histórico, não entrega um enredo palatável para o espectador de cinema comum, mas também não é exclusivo para consumo de cinéfilos, é para ser visto por quem se interessar em vê-lo, que podem se considerar corajosos por terem entrado em um provável grande ponto de interrogação, dependerá do seu conhecimento prévio, entretanto quando faltar o conhecimento que seja aberta a porta para a curiosidade, pois a experiência será definitivamente prazerosa para os curiosos.
Referências
Livros:
The Hero with a Thousand Faces – Joseph Campbell – Especificamente o papel do mentor na Jornada do Herói.
Grande Hotel Abismo: A Escola de Frankfurt e seus personagens – Especificamente o trecho em que se explica linguagem esopiana.
Sites:
https://www.planocritico.com/critica-arca-russa/
http://thebluelantern.blogspot.com/2014/06/aleksandr-sokurovs-russian-ark.html
http://redealeluia.com.br/conheca-o-significado-da-arca-da-alianca-de-deus/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Arca_da_Alian%C3%A7a
https://pt.wikipedia.org/wiki/Arca_de_No%C3%A9
https://en.wikipedia.org/wiki/Hermitage_Museum
http://hermitage--www.hermitagemuseum.org/wps/portal/hermitage/?lng=pt
https://www.hermitagemuseum.org/wps/portal/hermitage/digital-collection/01.+Paintings/32113/
https://www.franciscanmedia.org/solemnity-of-the-nativity-of-saint-john-the-baptist/
https://www.imdb.com/title/tt0318034/?ref_=tt_ch
https://www.imdb.com/title/tt0318034/reviews
https://en.wikipedia.org/wiki/Marquis_de_Custine
https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/o-liberal-e-o-czar-o-marques-de-custine-na-russia-de-nicolau-i/
https://www.cantodosclassicos.com/a-montagem-sovietica-no-cinema/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cinema_da_R%C3%BAssia
https://pt.wikipedia.org/wiki/Catarina_II_da_R%C3%BAssia
https://www.infoescola.com/historia/povos-eslavos/
https://www.todamateria.com.br/revolucao-russa/
https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historiageral/domingo-sangrento-revolucao-1905.htm
http://www.abcdogaucho.com.br/a-mazurca/
https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/ascensao-e-queda-dos-czares.phtml
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ocidentalismo
https://aulazen.com/historia/os-ocidentais-e-os-eslavofilos-da-russia/
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário