Ao final da sessão de Garota Exemplar fiquei por alguns minutos, como geralmente faço, aguardando todos saírem da sala e dessa vez olhando o semblante dos que a deixavam, me perguntando porque tantos deles estavam com aquela cara insonsa do personagem de Ben Affleck e tão costumeira do próprio ator mesmo diante de mais uma obra fantástica de Fincher...mas é fácil entender.
Escrito e roteirizado por Gillian Flynn com base no seu próprio livro, Garota Exemplar insere o espectador em um universo conjugal sufocante entre Nick e Amy; com o roteiro explorando de forma minuciosa e íntima os dois lados de um relacionamento conturbado e sustentado pela aparência - ou seja, mais um dos muitos casamentos que vemos hoje em dia.
É difícil imaginar outro ator a interpretar Nick que não Affleck, a inexpressividade tão marcante do ator aqui casa perfeitamente com seu personagem, que demonstra de maneira natural a indiferença de um marido saturado com seu relacionamento e pouco interessado no desaparecimento de sua própria esposa, o que contribui para a melhor interpretação de sua carreira e por deixar o espectador constantemente desconfiado. Já Rosemund Pike (Amy) é o destaque absoluto da trama e um achado de Fincher, que segundo diversos portais chegou a "brigar" com sua produção para que a britânica assumisse o papel que dá título à trama - indicação quase certa, Pike desbancou Reese Witherspoon, que ficou apenas como produtora após adquirir os direitos autorais da obra.
As visões de Nick e Amy sobre o relacionamento e momentos que marcaram suas vidas até ali é contado de forma simultânea e com muitos flashbacks, o que inicialmente requer do espectador certa dose de atenção e paciência para a construção de uma relação que durante as próximas 2 horas veremos magistralmente desmoronar.
Fica quase impossível falar do filme sem mencionar ou revelar momentos importantes na trama, mas da frase inicial onde Nick menciona sua vontade de rachar o crânio de sua esposa para obter respostas até a frase que encerra o filme se perguntando "o que fizemos um ao outro", o que vemos é um roteiro fantástico de Flynn com várias brechas para alguns momentos surpreendentemente cômicos, que quebram a tensão de uma forma tão natural que damos risada enquanto ainda suamos frio; além de uma direção arrojada e até certo ponto diferente de Fincher, que aqui fica mais engessado ao roteiro mas não menos genial que de costume. Outro ponto que vale ressaltar é a participação da excelente e ainda pouco conhecida Carrie Coon como irmã de Affleck, que na série The Leftovers fez um trabalho notável e aqui mantém o nível de sua performance, mesmo que com pouco tempo em tela.
A crítica ao sensacionalismo barato em busca de audiência sobre qualquer desgraça alheia, algo já presente no livro e no nosso cotidiano não traz absolutamente nada de novo, mas traz a competente e quase sempre histérica Missi Pyle como a Sônia Abraão da vez, o que não deixa de ser algo minimamente interessante.
Quanto ao desfecho considero absolutamente plausível, haja visto a face manipuladora e sociopata de Amy e toda passividade de Nick, que sempre enxerga uma desculpa pra não sair do lugar comum mesmo quando sua vida corre risco, onde sua omissão, fraqueza e passividade dentro do relacionamento acabam se mostrando ainda maior que seu próprio instinto de sobrevivência - que tipo de pessoa assina uma apólice de seguro enquanto joga video game deitado no sofá ou usa uma gravidez como motivo suficiente para se manter ao lado de uma assassina calculista? Não chega a ser nenhum absurdo dizer que ambos se mereçam - basta lembrar que ao final, antes de saber da gravidez de Amy, Nick permanece por mais de um mês sob o mesmo teto que ela e dormindo de portas fechadas, algo inimaginável para alguém que não seja monstruosamente acomodado ou omisso, o que chega a soar de maneira cômica ao espectador de tão patético.
Garota Exemplar é desses filmes cada vez mais raros onde ficamos dias pensando no que vimos e abertos as mais diversas interpretações, além de deixar a plateia sujeita a sair com cara de múmia ao final da sessão - quase impossível pensar em casamento após essas 2 horas e meia, por isso muitos devem ter saído com aquela cara de Affleck - algo escasso no cinema norte-americano atual e felizmente ainda bem vivo na carreira de David Fincher.
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