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William Friedkin: A contestação física e moral de um mestre

A eterna inquietude da autoria 

William Friedkin e Linda Blair. Fonte: Divulgação/Warner Bros. Pictures 
William Friedkin e Linda Blair. Fonte: Divulgação/Warner Bros. Pictures 

A minha intenção aqui é homenagear o agora – infelizmente – saudoso diretor de cinema William Friedkin, e como tal parto para discorrer algumas palavras acerca da trajetória sagaz deste cidadão que se desafiou e foi desafiado, principalmente no surgimento numa década a ser dinamitada como os anos 70. Não vou citar os mais variados trabalhos dele que não assisti, pra isso serve o link embutido no nome dele acima, link este que leva ao perfil do cara com toda sua filmografia. Isto aqui não é um estudo de percurso, mas, sim, um comentário baseado em um recorte arbitrário meu baseado nos poucos (e marcantes) filmes que comtemplei do sujeito. 

Operação França (French Connection, The, 1971). Fonte: Divulgação/20th Century Fox
Operação França (French Connection, The, 1971). Fonte: Divulgação/20th Century Fox

Algumas figuras se entrepuseram fazendo parte da Nova Hollywood nos 70. Cada uma delas com suas peculiaridades e vicissitudes atreladas às escolhas de seus projetos e com William Friedkin a aposta fora por temas cada vez mais caros ao cinema norte-americano, como o Cinema Policial, o Terror, o Thriller-suspense. E como tal elemento de uma geração mais hardcore, a demolição moral e cultural vinha imbricada em si, ele opera de astuciosa forma a romper certos limites, como em Operação França (French Connection, The, 1971) com seu protagonista irascível e faz o que for necessário para cumprir seus próprios objetivos. Chega a atirar em alguém pelas costas, além do seu encerramento absolutamente ambíguo. São momentos de subversão geracional com um caráter de iconoclasta arrasamento. Isto aliado ao trabalho arguto do Friedkin, que introjeta uma energia essencial à ação, culminando em uma cena de perseguição foda que criou escola. Um passo adiante no que Bullitt (Bullitt, 1968) do Peter Yates já aprontara em 1968. Desde sua seleção de planos à montagem dirigida e objetivada em agito, algo que casa com a estrutura vitalizada da narrativa e dos personagens. E do discurso forte. Característica que Friedkin carregaria, muitas vezes sem freios (o que é uma beleza).

O Exorcista (Exorcist, The, 1973). Fonte: Divulgação/Warner Bros. Pictures 
O Exorcista (Exorcist, The, 1973). Fonte: Divulgação/Warner Bros. Pictures 

Após ser laureado com diversas premiações por Operação França (French Connection, The, 1971), o prestígio do cara só cresceria e o seu próximo projeto seria revolucionário. O Exorcista (Exorcist, The, 1973) fez história em seu lançamento, seja por seu sucesso acachapante de bilheteria, ou por ser uma pedra de fundamentação do gênero terror, e seria considerado através dos anos como uma das fitas mais assustadoras já feita por público e especialistas. Acabara virando sinônimo para películas sobre exorcismo. Além de conter internamente diversos pontos de inflexão crítica. Sobre isto analiso rapidamente em um artigo curto publicado em 2019 no próprio Cineplayers:  

Obra de impacto cultural absurdo, que em grande parte ganhara tal força pelas escolhas de direção de um fenomenal William Friedkin, que corajosamente abriu a caixa de ferramentas do assombro demoníaco, nos dando uma obra de um peso no horror quase inalcançável, agindo dentro dos espectros sensoriais mais íntimos dos espectadores. Utilizando-se de um exemplar acervo de artifícios do horror. Jumpscares, aparições demoníacas e até um telefone. Seboseira, medo, pavor, nojo e o sexual profano. Estabelece um novo padrão no consumista médio de cinema quanto ao estrago das instituições sociais tão caras a si. Tudo isso embalado por este malevolente asqueroso em cenas inesquecíveis, citadas e discutidas ad infinitum pelo cinema. Num ambiente de vistosa pressão psicológica delimitada pelo espaço de uma casa onde paulatinamente vamos adentrando em limites menores até nos apertarmos num quarto sem fugas. Os exorcistas e o espinhoso infernal. O diretor aqui imprime o horror sob o gore tanto quando pelo espaço físico. Ficamos todos presos aos planos – ora médios, ora fechados – moldados naquele local com um som ensurdecedor e de quase se sentir o odor nauseabundo do enxofre do vômito verde expelido. Estamos diante do mal. NOGUEIRA (2019). [[1]]

Além do questionamento acerca do real impacto da obra, há acusações que supostamente ela teria sido boicotada [[2]] no Oscar 1974, por a academia considerar o horror ou um gênero menor ou uma mudança drástica demais diante do conservadorismo cinematográfico da academia até então, algo que poderia mudar a indústria. Boicote este que pode ter sido fomentado por peças importantes dos bastidores de Hollywood como George Cukor e Robert Aldrich. O primeiro por ser uma figura controladora e proeminente na academia e aplicara discurso de que naquele ano corrente não haviam concorrentes que disputassem o oscar de efeitos especiais, quando O Exorcista (Exorcist, The, 1973) exatamente também teria força demais nessa categoria, que cancelada fora. O segundo cidadão se meteria nessa por ter sido preterido para a direção do longa, e o roteirista (e autor do romance original (William Peter Blatty) teria imposto uma cláusula em seu contrato de venda dos direitos da adaptação do livro que consistia na indicação do cineasta responsável. Essas idiossincrasias denotam o impacto que o cinema de Friedkin estaria a causar no mainstream. Um sujeito com ideias extremadas que impostas ao cinemão, acabaria por chocar público, especialistas e a categoria como um todo.

Comboio do Medo (Sorcerer, 1977). Fonte: Divulgação/Paramount Pictures/Universal Pictures.
Comboio do Medo (Sorcerer, 1977). Fonte: Divulgação/Paramount Pictures/Universal Pictures.

Com tamanho e poder – obtido em conjunto com outros sucessos da turma da Nova Hollywood que aloprou com figuras como Steven Spielberg (Tubarão (Jaws, 1975)), Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão (Godfather, The, 1972) e Poderoso Chefão II ((Godfather: Part II, The, 1974)), George Lucas (Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança (Star Wars: Episode IV - A New Hope, 1977)) entre outros, que mudaram a face da indústria com trabalhos de vultuoso sucesso e com instigantes ideias a oxigenar o cinema norte-americano – agora ele tinha respaldo pra escolher projetos e obter abusivos orçamentos. É aí que seus problemas se aprofundam. Ele faz o ótimo Comboio do Medo (Sorcerer, 1977), que tão impactante como cinema também fora seu monumental fracasso. O material versa sobre uma equipe de criminosos que na base da falcatrua – coragem em soma com ganância, desespero e sobrevivência – dever-se-iam adentrar numa selva sul-americana com caminhões carregados de nitroglicerina. Um troço absurdamente tenso que destaca não só inquirições como ação e consequência dos atos, mas como o destino escroto e pessimista de personagens que independentemente de suas jornadas não serão resgatados e nem vencerão. O cenário miserável do local em meio a floresta onde não há escapatória para a população local que não seja a sobrevivência é ponto chave aqui, principalmente por conta do posicionamento crítico às ações de uma petrolífera norte-americana que comanda o local. Pra completar o absurdo do serviço temos a fantástica trilha do Tangerine Dream que acentua ainda mais os pavores já ensejados visualmente. Abusivo e grosseiro, entra no esteio do que era produzido nos anos 70. Porém este clima denso e direcionado (mesmo com uma inspirada direção que é criadora por cenas absurdas de tensionamento – como as da ponte) não seria o suficiente para manter o público em cima. Já que a disputa deste longa se dera junto ao fenômeno cultural Star Wars : Episódio IV - Uma Nova Esperança (Star Wars: Episode IV - A New Hope, 1977) [lançado um mês antes], que transformara o universo dos recém chamados blockbusters [fenômeno já bem iniciado em Tubarão (Jaws, 1975)]. A positividade da Space Opera de George Lucas suplantaria o pessimismo invocado de contornos políticos econômicos e morais da fita de Friedkin, além de ser considerado como uma das marcas da Nova Hollywood que talvez estivesse – como movimento que dava ampla liberdade para os autores – com os dias contados [[3]]. Agradecimento ao meu chapa Rodrigo Torres, pela indicação dessa fonte de pesquisa.

Parceiros da Noite (Cruising, 1980). Fonte: Divulgação/United Artists
Parceiros da Noite (Cruising, 1980). Fonte: Divulgação/United Artists

Entre este começo de problemas enfrentado por Friedkin, sua calamidade viria mesmo para o seu ousado projeto de 1980: Parceiros da Noite (Cruising, 1980). Trata sob um tema delicado – na verdade um puta vespeiro ou um ninho de maribondos – embalsamado dentro do gênero policial. E pra mim seu mais amaldiçoado filme, assim como também como mais vil e melhor obra. Al Pacino é um policial que adentra fartamente no universo do sadomasoquismo underground para descobrir a origem de serial killer que está a atacar e matar homossexuais com brutalidade. Ao invés do criatura Friedkin compor um arcabouço investigativo com foco nas mortes em si, ele, como é de praxe do seu cinema, aponta sua câmera para as nuances mais cruéis do submundo do sadomasoquismo assim como debate a questão da sexualidade (inclusive faz o personagem de Pacino pôr em xeque a sua própria, que caça esforços para provar a si mesmo que era heterossexual – lembra do vespeiro?) de forma contumaz, drástica e exposta. Acaba que ele consegue a façanha de desagradar os grupos defensores e adeptos do movimento gay do período, assim como conseguiria o desprezo de alas sociais conservadoras por conta de sua abertura temática. Dentro da esfera do trato sobre os homossexuais, “uma das principais queixas dos ativistas gays tem sido que o filme associa a violência especificamente com a cultura homossexual e mostra, ambas, como algo contagioso” (WOOD. 2017)[[4]]. A aposta é pesada no adentrar do submundo citado, a estrutura é profunda, em esquemas narrativos e estética. Pesado na indumentária de couro, relegado ao adentrar nos mais variados espaços como boates e pormenores de ação de seus frequentadores. Inclusive com o arrojo de algumas preferências de planos sensacionais, como no início onde a câmera tem foco e vulto sobre policiais e esculhambarem o ambiente para em seguida percorrer um caminho persecutório a uma bunda numa calça justa de couro, nos apresentando o sadomasoquismo gay e seu universo. Este extremo sem freios trouxe debates virulentos de temáticas sensíveis que obtiveram espaço de existirem naquela década, mas como nosso chapa Friedkin apertava demais e demonstrava uma preocupação em imbuir seu serviço de significados tais quais os debates aqui apresentados, e esse material fora amaldiçoado por estraçalhar demandas que poderiam ter sido apresentadas sob estratégias menos esgarçadas. É uma fita que a aplicabilidade de um materialismo histórico e dialético é grosseira exatamente em seu enfrentamento. “Tanto a cultura dominante quanto a subcultura são reveladas como constituídas sob e fatalmente corrompidas por relações de poder” (WOOD. 2017). Esta corrupção estica a corda porque as relações de poder aqui são tratadas fisicamente e vistas como consequenciais e culpabilizadoras (ativistas gays) ou afrontosas aos valores familiares (conservadores). Sem confronto e trans relação de poderes não seria Friedkin. Tão mal visto a época que até credenciou sua participação no primeiro Framboesa de ouro nas categorias de pior filme, pior diretor e pior roteiro. Por todo este radicalismo, ele entrara num limbo ao qual fora obrigado a ficar agarrado por um tempo.

A posteriori o sujeito entraria numa espiral processual de irrelevância mercadológica de seus projetos, o que o acabara por torna-lo um pária, com trabalhos ainda interessantes, mas que assustavam as produtoras graúdas. Algo que nem seu vitorioso histórico inicial resolveria. Ele acabou também entrando na seara de dirigir filmes direto para a TV. E um dos exemplos interessantes desta fase seria a refilmagem de 12 Homens e uma Sentença (12 Angry Men, 1997), que possui a qualidade da direção (com excelente elenco) de seu patrão, mas sem a obliteração moral de outros tempo. Entre criações menos abastadas ou não, o cara sempre tentou dar o máximo de tesão aos seus projetos quando era devido. Após a década de 90 cito mais 2 filmes dele para consideração. Caçado (Hunted, The, 2003), que trata sobre um embate entre mestre e pupilo militares (Tommy Lee Jones e Benício Del Toro), que entram em conflito após o segundo se transformar num assassino profissional, algo que caberá ao primeiro enfrentá-lo. Aqui temos um Fried mais contido nas temáticas morais as quais ele já abraçara, mas ainda assim transpõe camadas de trauma militar aos personagens que acabam por enriquecer a dicotomia entre ambos, além do ótimo serviço da dupla de atores. Porém o passo brabo do William Friedkin rumo aos eixos do seu cinema doentio seria seu Killer Joe - Matador de Aluguel (Killer Joe, 2011).

Killer Joe - Matador de Aluguel (Killer Joe, 2011). Fonte: Divulgação/LD Entertainment
Killer Joe - Matador de Aluguel (Killer Joe, 2011). Fonte: Divulgação/LD Entertainment

Killer Joe - Matador de Aluguel (Killer Joe, 2011) mostra uma família fodida (economicamente e moralmente – doença moral enraizada sempre é tema desse cara) que sem perspectivas além da própria estupidez, contrata um matador para conseguirem obter lucro com o seguro de vida de uma figura. Apresenta um sem números de sequências que atentam os tons doentios de falta de escrúpulos desta família, e o próprio assassino deixa de ser tão desprezível por alguns momentos para a família brilhar em sua podridão. Aqui é um puta veículo para atuação com histrionices controladas que o Matthew McConaughey (Killer Joe Cooper) é perspicaz em compor. Umas de suas melhores performances. A velha forma de seu diretor. Doenças sociais, destruição física e execução de espaços como mote de sobrevivência, traições a rodo e derrocada a um inferno visual absoluto. Com direito a um falso boquete numa coxinha de galinha para corroborar uma humilhação pós-surra a uma mulher que teria sido uma das responsáveis pelo comando do assassinato (além de traidora), inclusive querendo arrastar a grana para ela. Esse troço consegue o improvável de deixar um assassino pedófilo nas raias de ser menos nocivo que a família garapeira. Dentro de questionamentos sobre os limites da violência e os caralhos, aqui o diretor não alisa e compõe um grande trabalho de deliberações centrais bem definidas e um cinismo canalha desenfreado. Sem julgamentos morais em si, deixando isto para os espectadores. Serviria como espécie de filme-testamento do cara. Agarra várias de suas características e impõe-se por si só de maneira frontal e sebosa. Uma beleza.

Os filmes que assisti estão aqui citados, existem outros a serem visitados por mim obviamente. William Friedkin é um cara que merece sempre ser revisitado. A estirpe rara com a qual esse indivíduo é vinculado é a do inquieto. Do irascível, que lhe importa a conduta moral de seus personagens imbuídos de seus dilemas internos, externalizados com selvageria sempre que possível. A desobediência sistêmica de Friedkin ao status quo lhes custaria relevância financeira de suas fitas pós-1977, mas jamais lhe tiraria a confrontação pela qual é conhecido. Esse camarada não aceitava meias medidas como resolução de seus filmes, assim como o sustentáculo moral deles passa pela declaração física de seus protagonistas em entrega, drama, risco, destino e desmantelo. De uma menina possuída por um demônio, passando por um policial enfiado no submundo sadomasoquista até chegar num assassino de aluguel vinculado à pedofilia. A contestação do cara está na história. Isso que interessa.

William Friedkin. Fonte: A.FRAME. 2023
William Friedkin. Fonte: A.FRAME. 2023 



NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Trilogia O Exorcista. Pazuzu, o maldito alimento demoníaco de nossas crenças. Cineplayers. 2019. Disponível em: https://www.cineplayers.com/artigos/especial/trilogia-o-exorcista

[2] "Pode ser o fim de Hollywood!" - A Academia e o boicote a O Exorcista - Histórias do Oscar #21. Youtube/Dalenogare Críticas. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=a55faTovEt0

[3] Star Wars’ First Box Office Win Secretly Ruined Hollywood. SCREENRANT. 2022. Disponível em: https://screenrant.com/star-wars-box-office-sorceror-changed-hollywood/

[4] PARCEIROS DA NOITE – WOOD. Revista Interludio. 2017. Traduzido do inglês por Guilherme Savioli. Disponível em: http://www.revistainterludio.com.br/?p=10278


Textos sobre filmes do William Friedkin que já foram escritos no Cineplayers
Críticas

Operação França (French Connection, The, 1971). Por Rodrigo Cunha
O Exorcista
(Exorcist, The, 1973). Por Rafael W. Oliveira
Possuídos
(Bug, 2006). Por Alexandre Koball
Killer Joe - Matador de Aluguel
(Killer Joe, 2011). Por Bernado D.I. Brum

Artigos que envolvem William Friedkin

Trilogia O Exorcista - Pazuzu, o maldito alimento demoníaco de nossas crenças. Por Ted Rafael

Comentários (2)

Carlos Henrique | sábado, 12 de Agosto de 2023 - 09:23

Artigo excelente, Ted. Adoro esse tipo de conteúdo.

Ted Rafael Araujo Nogueira | sábado, 12 de Agosto de 2023 - 17:10

Beleza demais meu patrão. Pois aguarde aí que mais materiais desta envergadura chegarão por aqui.

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