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Dor e Glória

(Dolor y Gloria, 2019)
7,7
Média
156 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Almodóvar, "Ocho y Medio"

8,0

O diretor Pedro Almodóvar tornou seu imaginário bem conhecido ao longo de sua carreira que já dura desde 1980, alçada para o sucesso com Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) e Ata-me! (1990) e a consagração mundial com Tudo Sobre Minha Mãe (1999), Fale Com Ela (2002) e Volver (2006), além do mais tardio A Pele Que Habito (2011), pelos quais Almodóvar conquistou prêmios de roteiro, direção e melhor filme estrangeiro em alguns dos principais prêmios do mundo, como Oscar, Cannes e BAFTA, além de prêmio honorário no César e seis estatuetas no Goya, premiação máxima de sua Espanha. Os números atestam a força desse cinema vibrante, colorido e visceral como um dos grandes nomes da história recente do cinema.

Obra sobre legado, Dor e Glória é uma reflexão sobre o caminho percorrido até aqui. Salvador Mallo (Antonio Banderas) teve uma infância simples, mas sua inteligência e dotes musicais o levaram a estudar em um seminário e, já na idade adulta, seguir a carreira de diretor de cinema. Apesar dos louros da fama, das mostras que o homenageiam, da restauração de um clássico do cinema, Salvador não consegue filmar: está com um bloqueio criativo, terríveis dores de cabeça e de coluna, engasga com facilidade e começa a fumar heroína para combater as dores. No meio do caminho, reata a amizade caótica com o ator Alberto, interessado em encenar um texto seu sobre um namorado viciado e, enquanto experimenta o transe toxicômano, relembra das dificuldades, dos afetos e da mãe.

No campo da metalinguagem, Almodóvar anda em um terreno onde outros clássicos antigos e novos já habitam: O Desprezo (1963) de Godard, 8 ½ (1963) de Fellini e seu filhote, Memórias (1980), de Woody Allen; Barton Fink - Delírios de Hollywood (1991), dos irmãos Joel e Ethan Coen, Adaptação, de Spike Jonze, entre outros. Há uma constante temática amarrando esses filmes: egocentrismo e narcisismo, nostalgia e traumas, opressões cotidianas, enfim, toda a bagagem de um criador. Costuma ser também filmes onde o delírio visual é constante, como podemos lembrar pelas sequências oníricas de Fellini ou as perturbações constantes dos irmãos Coen.

Porém, tendo como cenografia de fundo as cores berrantes e as referências às artes plásticas, Dor e Glória é um filme íntimo, feito de conversas e não de grandes acontecimentos. As idas e vindas no tempo são fragmentárias e não vemos grandes mortes, explosões emocionais ou tragédias individuais de personagem materializadas, mas sim momentos de consequência, resultado e sobrevivência. Em um performance sóbria e deprimida, Antonio Banderas expõe muito mais a “dor” que a “glória” de ser uma lenda viva, sendo quase sempre a parte silenciosa das conversas nas quais engaja, cansado e perdido em si mesmo.

Sendo um filme que parte da forte ótica de um personagem, é certo que a forma como o filme é montado obscurece outros personagens. Além de Banderas, há outros habitués do cinema do diretor, como Penélope Cruz e Julieta Serrano como diferentes versões de Jacinta, mãe de Salvador, e Cecília Roth como a dedicada atriz e amiga Zulema, que orbitam ao redor da infinita angústia do personagem principal. Penélope com fibra e Julieta com franqueza moldam o caráter do personagem em dois momentos: Jacinta é uma personagem ambivalente, que quer o bem para o filho, porém de acordo com suas vontades - o que se reflete em um protagonista que conquistou muito, mas nem por isso se sente satisfeito.

Assumidamente autobiográfico, Dor e Glória é sobre essa carência de plenitude que resume a vida do personagem e o ritmo letárgico, com a câmera demorando em solilóquios discretos e sem grandes curvas, busca uma espécie de saída ou comunhão da “jaula de ouro” onde o protagonista se enfiou e não sabe sair. A câmera é sempre intimamente próxima, se recusando a cortar, em momentos de puro desejo ou profunda dor. Os cenários coloridos agora são cobertos por sombras que raramente abandonam seu protagonista. O humor é quase sempre deprimente. Mas, de alguma forma, Almodóvar consegue criar em cena uma sensação de esperança onde há humanidade, pois ainda consegue descobrir olhares cúmplices, momentos de introspecção e desejos que o tempo é incapaz de minar.

Dor e Glória é o momento de olhar para trás, um filme sobre cinema e sobre o íntimo de um profissional criativo em tom discreto e confessional, tipo de obra que só a experiência traz, mas que nem por um minuto abandona o olhar único e intenso de Pedro Almodóvar, confirmando o poder de fogo de seu cinema. Quase uma autohomenagem, o surpreendente final é um dos momentos mais redentores do cinema de 2019, e mostra que, mesmo em sua fase mais experiente, o diretor ainda pode nos surpreender com sua ótica sempre inusitada. Mesmo quando cozinha em fogo baixo, tem uma força avassaladora herdada que verte suas influências do grande cinema hollywoodiano em choque com o mais frontal realismo do drama europeu debaixo de um universo muito particular sobre família, sexualidade, identidade e desejo de maneira que nunca deixará de ser única, refinada a um nível que seus filmes sempre funcionarão como novos capítulos de um longo material para fruição e análise - seja racional ou emocional - de um dos maiores estetas e artistas do nosso tempo. 

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