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Críticas

Cineplayers

A obra-prima máxima do diretor japonês Ozu retrata crianças aprendendo a ser adultas - e se decepcionando com isso.

10,0

Este filme começa da seguinte forma: uma família de classe média está se mudando, para que o pai possa ficar mais perto do trabalho. O carro de mudanças atola na lama, e vemos o pai descer para tirá-lo de lá. Quando ele tira, pede para seus dois filhos irem na frente se encontrarem com a mãe deles, que já estava na casa, enquanto ele ia cumprimentar o seu chefe. Apesar de soar apenas como uma maneira despretenciosa de se começar o filme, esta cena inicial diz muito mais do que aparenta; ela prepara o tom para todos os outros 90 minutos de projeção. Este é o primeiro filme realmente sério do Ozu e, por muitos, considerado sua primeira obra-prima (inclusive, foi o primeiro de 6 filmes do diretor a ganhar o prêmio 'melhor filme do ano' na publicação japonesa Kinema Jumpo)Com o país assolado pela Grande Depressão, e já vivendo a sombra da Segunda Guerra, Ozu percebe que a realidade já não podia mais ser mascarada por comédias pastelões sobre universitários, e começa a moldar seu estilo para o shomingeki (literalmente: drama do povo), visando a vida do trabalhador comum assalariado. Isso começa a se desenvolver nos dois capítulos anteriores da trilogia ('Me Formei, Porém...' e 'Fui Reprovado, Porém...') e em 'Coral de Tóquio', para enfim atingir seu ápice neste filme.

Ao contrário do que se poderia pensar, a estória não é sobre o pai, mas sobre os filhos. Ou melhor, sobre as divergências entre pai e filhos, entre o mundo de acordo com os adultos e de acordo com as crianças. Mas, à primeira vista, parece que o filme trata-se apenas da luta hierárquica patrão-empregado. Logo que a família chega, os dois irmãos se deparam com o grupo de garotos da vizinhança, cujo 'líder', um garoto um pouco mais velho, implica com os dois, e põe todos os outros contra eles. Assim se sucedem várias brigas entre eles, e eles acabam matando aula um dia para não ter de enfrentar o colégio e os garotos. Chegando em casa e achando que iam enganar o pai com um falso teste de caligrafia, se surpreendem ao perceber que este havia se encontrado com o professor de um dos irmãos no caminho de volta para casa e ficado sabendo da audência deles do colégio. O pai então dá em sermão, enfatizando a importância deles irem às aulas, estudarem muito e se tornarem pessoas importantes. Os dias vão passando, e os dois se metendo em novas brigas com a turma da vizinhança, até que o irmão mais novo faz amizade com o rapaz que vendia saquê de porta em porta, e chama este para ajudá-los. Aqui, o 'mundo adulto' e o 'mundo criança' começam a se entrelaçar. O jovem vendedor vai até o líder do bando e manda este ir embora e nunca mais importunar os irmãos; o agora ex-líder era o único realmente problemático da turma, mas os dois, embriagados pelo poder persuasivo do vendedor, pedem para ele dar um jeito num outro garoto da turma que estava ali na hora; mas este se recusa, dizendo que aquele garoto era importante: "A família dele compra muito mais sakê que a sua".

Os dois irmãos e o garoto passam então a serem amigos, e se tornam eles os líderes do bando. Eles têm um jogo entre eles, onde um dá um 'olhar malígno' para o outro, que tem de cair morto no chão. O que deu o olhar faz o sinal da cruz e estica os braços como se ressuscitando o morto, que então levanta. É usado pelos dois líderes para mostrar a superioridade deles mas, é claro, não passa tudo de uma brincadeira. Um dia, o pai dos dois vê a cena, e proíbe os filhos de fazerem aquilo com o garoto cuja família era tão importante para o vendedor de saquê. Descobrimos então que o garoto é Taro, filho do Sr. Iwasaki, dono da empresa onde o pai dos irmãos trabalhava. Os dois não entendem o porquê, e continuam fazendo. Um dia, os dois dão o 'olhar malígno' para uns moleques do grupo e todos caem, exceto o tal garoto, que diz não poder sujar a roupa na terra, pois terá visitas à noite. Ele diz que o pai chamou uns colegas para irem assistir a filmes caseiros em 16mm, e chama a turma para ir também. À noite, os dois irmãos percebem que um dos convidados do dono da casa foi o pai deles, e todos se juntam na sala para assistirem aos filmes. No começo são apenas filmagens da rua e do zoológico (que gera uma longa discussão entre os garotos, se a zebra tem listas brancas em pele preta ou o inverso), até que chega a cenas do escritório. Mostra-se primeiro os funcionários se exercitando nos alongamentos matinais, e os irmãos logo percebem a presença do pai. Em todas as cenas em que o pai deles está presente, este acaba fazendo alguma palhaçada, e todos na sala acabam rindo, inclusive os dois. Mas, ao passo em que as cenas se tornam cada vez mais frequentes, eles começam a ficar mais sérios, olhando com ar de reprovação o pai, que ri constrangido às proprias palhaçadas feitas no filme à pedido do chefe. É quando um dos outros garotos da turma presente fala pros dois: "Seu pai é muito engraçado" que cai a ficha sobre o vendedor de saquê, sobre a proibição de 'ressuscitar' Taro e sobre a cena que eles presenciavam: o Sr. Iwasaki que era a pessoa importante, o pai deles não era ninguém.

Aqui a narrativa toma um rumo totalmente diferente; o que antes era apenas uma comédia sobre um bando de garotos (que alguns chamam claramente de Keatoniana, apesar d'eu discordar da referência), torna-se então uma crítica social. Todo o ideário de uma vida dedicada aos estudos que o pai botava na cabeça dos filhos não vale nada, já que ele em si é um fracassado. Ao saírem no meio da projeção, indo para casa, os dois tiram seus casacos, jogam-nos por cima do ombro, enfiam a mão no bolso e vão caminhando. Essa atitude - tipicamente de assalariados - não condiz com o comportamento de uma criança, e é usada para ilustrar que as duas visões de mundo entraram em choque, e que a dos adultos se sobressaiu. Como poderia uma criança entender que o colega de escola sempre será mais importante, porque o pai é mais rico? Ao chegar em casa, o pai é confrontado pelos irmãos, que dizem: "Somos mais fortes que o Taro e tiramos melhores notas". Eles constatam que, se de qualquer modo vão ter de se submeter ao Taro algum dia, não têm necessidade de se esforçar tanto para ir à escola. De certa forma eles têm razão, na sociedade deles (o grupo da vizinhança), é superior quem merece ser, por que eles teriam de se submeter a este sistema? O pai deles fala que não pode se rebelar contra o seu chefe e se tornar chefe dele porque é ele quem paga o salário e, consequentemente, a comida deles. Apesar de ser apenas um exemplo, os dois se fixam nisto como a razão primordial de ser da condição rebaixada do pai e apelam para uma greve de fome.

O que temos no filme então é uma luta constante de valores. É um trabalho bem moderno para a época, mostrando vários travelings, panorâmicas, edição arrojada, inclusive um recurso já inventado por Ozu antes, do filme dentro do filme. As atuações também dão um charme especial. A mãe dos garotos está meio apagada, e não tem muita importância, mas o pai é uma figura central, e o ator Tatsuo Saito faz uma performance marcante como um pai extremamente sentido pelas constantes acusações dos filhos, mas ao mesmo tempo compreensivo (o que funciona muito melhor que um pai excessivamente autoritário e estereotipado, que provavelmente seria a opção de muitos atores); Takeshi Sakamoto tem um papel pequeno no filme como o chefe Iwakaki, mas ainda assim consegue criar uma certa simpatia pelo personagem; mas é o trio de garotos (os dois irmão mais o Taro) que merecem atenção maior. Notem como sempre que o irmão mais velho faz um gesto, o mais novo o repete. Aliás, Tomio Aoki, que faz o papel do irmão menor, já era um regular do Ozu, tendo feito já quatro filmes com o diretor (dois nos quais - 'Tokkan Kozo' e 'Sopro da Sorte' - ele teve o papel principal), e aqui tem a melhor atuação da carreira. É uma pena vê-lo substituído pelo apenas mediano Masahiko Shimazu em 'Bom-dia', filme de 1959 do diretor baseado neste clássico silencioso.

Este filme termina com os dois garotos desistindo da greve de fome e finalmente perdoando o pai; mas como a conversa no final entre eles e Taro mostra, os garotos não estão afim de seguir essas regras do mundo adulto e, caso dependesse só deles, não teriam de fazê-lo. Apesar de ser um tanto otimista, não é tanto quanto os dois capítulos anteriores dessa trilogia, o que já é um indício de um estilo mais melancólico, que culminaria no sentimento de vazio e tristeza da trilogia de Noriko do pós-guerra. A figura do ovo é muito usada no filme, já que os garotos passam o tempo todo comendo ovo de codorna, achando que com isso estão ficando mais fortes. Isso é uma analogia a um desenho que existe no plano de fundo durante os créditos iniciais, de um menino saindo de dentro de um ovo; aquilo não representa o nascimento, mas sim o renascimento, de quando os garotos saem da proteção do mundo das crianças e enxergam a realidade da vida, o que, assim como os ovos de codorna, possibilita a eles ficarem mais fortes e talvez um dia poder ir contra a corrente representada pelo carro atolado na lama que carreagava os irmãos no começo do filme: uma sociedade atolada no sistema hierárquico. Por essas e outras, este é não só um dos melhores filmes já feitos sobre a infância (junto com 'Idade da Inocência' do Truffaut, e certamente um predecessor do neorealismo italiano), como também uma das grande jóias do cinema mundial.

Comentários (1)

Gabriel | quarta-feira, 21 de Dezembro de 2011 - 05:13

A crítica está boa, mas precisava contar o filme inteiro, inclusive o final???

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