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Críticas

Cineplayers

Baseado em sua própria peça de sucesso, o diretor Robert Lepage nos apresenta um aperitivo em forma de um maravilhoso filme

8,0

Em 1998, o diretor teatral canadense Robert Lepage levou para o cinema uma de suas peças mais famosas, Os sete afluentes do Rio Ota, criação coletiva de seis horas de duração – no Brasil, a versão ficou a cargo de Monique Gardenberg, com Maria Luisa Mendonça, Bete Goulart e Caco Ciocler no elenco. Batizada de , a versão cinematográfica também dirigida por Lepage narra apenas uma das sete estórias da peça, “The words”, a terceira pela ordem, de forma que tem apenas um quarto da duração total, uma hora e meia, cômoda para as platéias de cinema.

É pena que o diretor não dirigiu as demais estórias e filmado tudo. Não só a peça é um marco do teatro mundial como o pouco adaptado para o cinema deu origem a um filme engraçado, inteligente, cosmopolita e multicultural na medida certa. (Mike Nichols foi mais feliz em adaptar a igualmente gigantesca Angels in America para a televisão, reduzindo as sete horas originais para cerca de cinco, exibida em duas partes na HBO e posteriormente lançada em DVD com enorme sucesso.)

“Os Sete Afluentes do Rio Ota” é um prodígio. Passada em cinco países (Canadá, EUA, Holanda, Japão e Polônia), em três épocas diferentes (anos 40, em plena II Guerra Mundial, anos 70 e final da década de 90), é falada em seis línguas (inglês, francês, polonês, alemão, holandês e japonês), com mais de 20 personagens. Confuso? Nem um pouco. Prolixa? Pelo contrário, é o cúmulo da concisão. Dinâmica, emocionante e com muito humor, Les sept branches de la Rivière Ota é universal, uma esfuziante celebração das diferenças culturais como forma de aproximação e compreensão dos homens.

Uma atriz canadense em início de carreira (a hilariante Anne-Marie Cadieux) está em Osaka apresentando uma comédia do francês Feydeau (curiosamente em cartaz em São Paulo, com Cacá Rosset). Fez amizade com a tradutora da peça para o japonês – ela é cega porque, quando criança, foi atingida pela radiação da bomba em Hiroshima. Descobre que está grávida, mas não sabe se o filho é do namorado canadense, que está em Montreal conspirando contra os ingleses para a libertação do Canadá. Ela é assediada por dois homens, o embaixador canadense no Japão e por um dos atores da peça – um dos prováveis pais de seu filho.

Quase toda a ação transcorre num único dia, 16 de outubro de 1970, quando o primeiro ministro canadense decreta a prisão dos conspiradores – essa parte foi reduzida na montagem brasileira; o corte explica-se pelo excesso de referências à história do Québec, a parte francesa do Canadá. No filme, os detalhes não foram poupados e pode se tornar confuso para quem nada sabe sobre a geografia e história canadense.

Sophie, a atriz em apuros, precisa dar atenção ao namorado guerrilheiro do outro lado do mundo, fugir dos homens em seu encalço e agüentar a terrível esposa do embaixador, uma falante e pernóstica francesa que perde o trem para Tóquio e acaba descobrindo a traição do marido (no Brasil, foi vivida de maneira esplêndida por Bete Gourlart, atriz que parece não ter tido na televisão a sorte que tem no teatro).

Enquanto isso, a tradutora cega descobre o amor com um canadense de Vancouver e prepara-se para deixar o Japão e viver com ele, que não tem os preconceitos dos japoneses em relação às vítimas da guerra (quem foi atingido pela radiação, a “chuva negra”, tinha enormes possibilidades de desenvolver câncer e gerar filhos defeituosos, de forma que nunca se conseguiam se casar).

Enfim, apenas um aperitivo da monumental obra que é a peça, um painel que conta, na primeira parte, a história de Luke, um fotógrafo americano que fotografou os horrores da bomba no Japão, e sua família por 50 anos. Na segunda parte, uma amiga da família relembra e arremata o ciclo anterior ao relembrar de como fugiu do campo de concentração nazista de Terezin graças à ópera Madame Butterfly.

Quem viu a peça vai se deliciar. Quem não viu poderá conferir a obra de um cineasta originalíssimo, um dos grandes artistas contemporâneos, em sua, talvez, obra-prima definitiva (ainda que só uma parte dela).

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